A Procuradoria Geral da República entregou aos poucos os tomos de investigação sobre o massacre de San Fernando (Tamaulipas). Isso foi feito para cumprir uma sentença da Suprema Corte de Justiça da Nação, nove anos depois que as valas com 196 corpos foram encontradas. Ana Lorena Delgadillo, diretora da Fundação para a Justiça e Democracia, foi buscar os documentos com paciência. Um procurador especial lhe deu um aviso especial em um desses dias. “Cuidado com o que encontrarem lá”. Era o tomo 221. O que estava dentro do arquivo de uma das maiores chacinas do México, perpetrada pelos Zetas, era uma investigação contra três das mulheres que mais lutaram para desvendar a verdade. A então Procuradoria Geral da República (PGR) abriu uma investigação contra Delgadillo, advogada das vítimas, a jornalista Marcela Turati e a antropóloga argentina Mercedes Doretti. A investigação, por crime organizado e sequestro, permitiu ao governo rastreá-las durante meses entre 2015 e 2016. Uma investigação que oito anos depois ainda está em aberto.
Amnistia Internacional apresentou nesta terça-feira o relatório “Perseguidas: criminalização das mulheres defensoras dos direitos humanos no México”, no qual exige que o governo mexicano “cesse qualquer investigação, espionagem ou tentativa de ação penal arbitrária” contra elas. Delgadillo, Turati e Doretti (por videoconferência) estavam acompanhadas por Carmen Aristegui e pela equipe da Amnistia para lançar o grito de alerta comum: como pode continuar em vigor na Procuradoria Geral da República uma perseguição aqueles que buscavam trazer à luz a chacina?
Em 24 de agosto de 2010, uma nova modalidade de horror foi desenterrada no México. Luis Freddy Lala Pomavilla, de 18 anos, imigrante equatoriano, chegou sangrando a um posto militar na estrada 101 de Tamaulipas, na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Antes de desmaiar em um hospital, deu o aviso: “Homens armados nos sequestraram. Mataram todos”. Levou os militares a uma fazenda abandonada em San Fernando. Lá estava o horror: 72 migrantes mortos no chão a queima-roupa, 58 homens e 14 mulheres estavam manietados. Mas não foi o fim do terror. Em abril de 2011, o exército encontrou pelo menos 48 valas clandestinas em San Fernando, das quais foram recuperados, pelo menos, 196 corpos. As investigações atribuem as chacinas aos Zetas.
Marcela Turati chegou aos campos de extermínio para ver como caminhões do governo de Felipe Calderón levavam 120 corpos na frente de familiares desesperados em busca de identificação. “Foi o operativo para ocultar esses corpos. Trouxeram-nos à Cidade do México, fizeram-lhes duas ou três coisas, e voltaram a enterrá-los. Me tocou ver como o governo faz desaparecer os desaparecidos, como continua a fazê-los desaparecer”, relatou nesta terça-feira a jornalista. Por sua vez, Ana Lorena Delgadillo começou em 2012 a representar as famílias daqueles migrantes desaparecidos, massacrados em sua passagem pelo México. O Equipe Argentina de Antropología Forense também foi aceito em 2013 como parte da investigação independente do massacre. Mercedes Doretti era sua diretora e também foi escolhida como parte da Secretaria Técnica forense, juntamente com a direção de serviços periciais da FGR, para investigar, identificar e determinar a causa da morte dos restos mortais do massacre.
As três continuaram incansavelmente seu trabalho. Mas em 2015, após a publicação de algumas reportagens de Marcela Turati, durante o governo de Enrique Peña Nieto o caso dá uma reviravolta. “Pessoal da Subprocuradoria Especializada em Investigação de Delitos Organizados (SEIDO) da PGR desviou recursos da investigação de uma das violações mais graves dos direitos humanos para investigar indevidamente e espionar Ana Lorena, Marcela e Mercedes”, aponta o relatório da Amnistia. Foi uma investigação por sequestro e crime organizado. A gravidade das investigações permitiu à PGR solicitar ilegalmente informações de telecomunicações, identificar com quem falaram e onde estiveram, pedir ilegalmente seus dados pessoais e textos para analisar suas assinaturas, e espionar as defensoras. “Tudo sem cumprir as formalidades exigidas pela lei, destacando a falta de autorização judicial”. Nunca foram informadas de que havia uma acusação contra elas nem por que estavam sendo investigadas.
As defensoras descobriram anos mais tarde. Quando, finalmente, a Fundação teve acesso ao arquivo e leu o tomo 221. O impacto foi total. “Como posso ser especialista a este nível nesta investigação e, ao mesmo tempo, estar sendo investigada por crime organizado neste mesmo processo? É algo que me parece incompreensível”, disse Doretti. “Para mim, foi muito forte descobrir que sou ao mesmo tempo advogada das vítimas e perseguida por crime organizado e sequestro. A FGR de forma ilegal desviou todo seu poder da máquina penal, e todo o poder da lei, contra nós três, quando só estávamos tentando que as famílias tivessem uma resposta”, refletiu Delgadillo, apontando o principal ponto: “Não só intervêm em nossos telefones. Nos colocaram na mesma investigação onde deveriam estar investigando o crime organizado pela chacina, que até hoje está impune”.
Delgadillo e a Fundação para Justiça apresentaram uma denúncia que, até o momento, não teve mais avanços. As defensoras entraram com uma queixa na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que foi arquivada “sem uma análise detalhada e correta das violações dos direitos humanos, e reaberta somente depois que elas entraram com um amparo”, relata a Amnistia Internacional.
A criminalização não terminou aí, porque não terminou. “Pode-se pensar que isso fazia parte de uma administração anterior e que ao chegar uma nova, imediatamente teria encerrado essa investigação, teria punido os responsáveis, removido do processo todas essas informações sobre nós três, e também nos teria dado as desculpas correspondentes. No entanto, pelo contrário, nada disso aconteceu, não apenas não aconteceu nada disso, como também não recebemos nenhum apoio ou explicação por parte da FGR ou da administração”, disse Doretti, que questiona diretamente: “O que se busca ao manter aberta claramente esta causa arbitrária?”.
Amnistia Internacional declara que até a data da publicação do relatório ainda “não se sabe se a espionagem e a investigação contra elas continuam”: “Ana Lorena, Marcela e Mercedes permanecem sem acesso a reparações pelas violações de seus direitos humanos e com uma ameaça constante de que o uso indevido do sistema de justiça penal continue investigando-as”. Por essa razão, a organização exige que a atual Procuradoria conduza o Não Exercício da Ação Penal (NEAP), elimine todas as informações confidenciais e dados pessoais de Ana Lorena, Marcela e Mercedes, suprima o tomo 221 da investigação, e investigue os funcionários públicos envolvidos no espionagem contra as defensoras.