A líder da comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, defendeu a liberdade nesta sexta-feira com uma música de Calamaro antes de condecorar o chefe de Estado argentino, Javier Milei:
“Quem a conhece são aqueles que a perderam”
“Aqueles que a viram de perto, ir embora para longe”
“E aqueles que a encontraram de novo”
“A conhecem os presos”
“A liberdade”
É uma boa desculpa para nos perguntar que tipo de liberdade estão defendendo.
No filme “Negócios ocultos”, a história é contada de Senay, uma imigrante ilegal que trabalha em um hotel nos bairros pobres de Londres. Sua situação se torna crítica quando as autoridades de imigração começam a suspeitar de seu status ilegal e a pressionam. Sem outra opção, ela concorda com a proposta de seu chefe de vender um de seus rins em troca de um passaporte falso. Essa cena reflete um debate extremamente relevante para a filosofia: Diriam que essa decisão foi tomada com consentimento ou não?
Milei com certeza diria que sim. Em uma entrevista (antes de ser eleito), perguntaram a ele sobre esse assunto e ele respondeu o seguinte: “A pessoa que decidiu vender o órgão, como afetou a vida, a propriedade ou a liberdade dos outros? Quem é você para determinar o que ele deve fazer com a sua vida?”. Apesar de essa resposta poder ser chocante, é perfeitamente consistente com sua concepção libertária da economia, a versão mais extrema do pensamento liberal.
Mas, para entender, precisamos investigar o próprio conceito de “liberdade”. Esse conceito, que abrange desde a liberdade de expressão, de escolher um governo, até a liberdade de movimento, tem sido objeto de debates filosóficos, políticos e sociais ao longo da história. Isso levou a que possa ser entendida de diferentes maneiras, sendo as noções de “liberdade negativa” e “liberdade positiva” as mais proeminentes na teoria liberal moderna.
Essas duas noções foram elaboradas por Isaiah Berlin em sua célebre conferência “Dois conceitos de liberdade”. A liberdade negativa refere-se à ausência de obstáculos, barreiras ou restrições impostas por terceiros. Nesse sentido, uma pessoa é livre na medida em que não está sujeita à interferência de outros. Por outro lado, a liberdade positiva implica a capacidade de uma pessoa de estar plenamente consciente do que quer e agir em função disso, ou seja, agir de acordo com sua própria vontade e com autonomia. Isso implica a capacidade de tomar decisões informadas e voluntárias, livres de coerção externa e interna.
Voltando ao exemplo de Senay, de uma concepção negativa essa decisão seria considerada feita com total liberdade, pois não se observa nenhum impedimento ou restrição imposta por terceiros que a tenha obrigado a fazê-lo. Por outro lado, de uma concepção positiva da liberdade, Senay não teria agido de acordo com sua própria vontade, pois existe uma coerção interna que limita sua autonomia real. Se a única maneira que uma pessoa vê para sobreviver é vendendo um órgão, sua capacidade de escolha está significativamente restrita. Nesse sentido, a decisão não é plenamente livre porque não é uma escolha feita em condições de igualdade e equidade, mas sim sob a pressão extrema da necessidade básica de sobrevivência.
Agora estamos em condições de decifrar a posição de Milei. A abordagem libertária se baseia na crença de que não há ninguém melhor que o próprio indivíduo para tomar suas decisões. Assim, qualquer tentativa de regular ou restringir essa escolha por parte do Estado não apenas constitui uma violação dos direitos individuais, mas também levará a um resultado pior (em termos econômicos). Para Milei, não há nenhum caso em que a intervenção do Estado seja positiva, nem mesmo para uma pessoa que não tem nem o suficiente para se alimentar. Portanto, a forma de potencializar a liberdade individual é através da diminuição do Estado.
Mas será que é realmente assim? O problema com qualquer posição radical é que ela esquece a outra parte da biblioteca. A concepção positiva da liberdade é igualmente crucial para o bem-estar e o desenvolvimento humano. A mera ausência de restrições não é suficiente para garantir a verdadeira liberdade. Uma pessoa que não foi bem nutrida quando criança ou que não teve acesso à educação terá severamente afetada sua capacidade de tomar decisões, restringindo sua autonomia e, portanto, sua liberdade. Há amplas evidências de que uma boa alimentação é fundamental para o desenvolvimento do cérebro e das capacidades cognitivas, sem mencionar a educação.
A verdadeira liberdade deve ser entendida não apenas como a ausência de restrições, mas também como a capacidade de agir com plena autonomia. Isso exige um equilíbrio entre a liberdade positiva e negativa, bem como entre o papel e o grau de intervenção do Estado, uma vez que a falta de acesso a recursos básicos, como alimentação, saúde ou educação, minam a capacidade das pessoas de se desenvolverem plenamente e, portanto, restringem sua liberdade efetiva.
Por esses motivos, as medidas de ajuste aplicadas por Milei, especialmente aquelas relacionadas ao corte da educação e da ajuda social, embora possam ser vistas como uma tentativa de reduzir a intervenção estatal e promover a liberdade, na realidade a estão minando.