A entrada de Carlos Más no restaurante é como entrar em sua própria memória. Seu olhar percorre o piso feito de madeira reciclada, a mesa central que antes era um torno em uma padaria, as chapas oxidadas que um dia cobriram os tetos de um galpão de frangos. Ele anda devagar, como quem pisa em terreno sagrado. Talvez porque seja mesmo. “Eu fiz tantos desenhos, passei tantas horas sonhando com este lugar, que hoje sinto algo especial toda vez que cruzo essa porta”, diz. Ele fala devagar, escolhendo as palavras com cuidado. Nada neste espaço parece ser fruto do acaso. As marcas de facas na mesa central, o brilho áspero do balcão, as pesadas vigas que sustentam o teto: tudo, absolutamente tudo, tem uma história. E essas histórias, que estão nas coisas, o atravessam por completo. “Isso nasceu com a ideia de cozinhar com uma conexão emocional. Um espaço que te convida a ficar, a ter longas sobremesas, a compartilhar o simples”, explica Carlos.
Carlos teve décadas como médico, profissão que escolheu aos 13 anos, quase sem hesitar. Ele se dedicou à medicina social, atuando com afinco em Capitán Sarmiento, até que as horas sem dormir, o peso de ser o único pediatra da cidade e as crises alheias fizeram a sua própria desmoronar. Foi então que ele parou. Leu. Pintou. Fez aulas de teatro. Voltou a se repensar. E entre essas pausas, entre a calma inesperada, foi germinando essa ideia: construir um lugar que convocasse as pessoas não só para comer, mas para se sentirem parte de algo. “Isso nasceu com a ideia de cozinhar com uma conexão emocional. Um espaço que te convida a ficar, a ter longas sobremesas, a compartilhar o simples”, explica.
A adega de La Mancha está localizada abaixo do restaurante. A construção que abriga a La Mancha Cocina de Fuegos se destaca como uma anomalia na paisagem. Por fora, o restaurante parece um galpão velho, oxidado, esquecido no tempo. Mas ao entrar, a percepção muda completamente. Cada canto tem uma textura diferente: madeira polida pelo uso ao longo de décadas, chapas corroídas que agora sustentam luminárias feitas com tremonhas, um piso que range com o peso das histórias que carrega. “Eu queria um lugar de contrastes. Que por fora não parecesse o que é, e que ao entrar, a surpresa faça você querer ficar”, diz.
Ele conseguiu. A mesa central, pesada e maciça, teve que ser baixada por seis pessoas. Foi trazida por uma mulher que queria ver com seus próprios olhos o local de trabalho de seu pai por 70 anos. As tábuas do balcão são as mesmas onde, um dia, se preparou pão. “Tudo o que está aqui tem uma vida anterior. Encontrei tantas histórias enquanto construía isso… É como se essas energias tivessem ficado aqui neste lugar”, diz, enquanto percorre o salão. “Eu queria um lugar de contrastes. Que por fora não parecesse o que é, e que ao entrar, a surpresa faça você querer ficar”, diz Carlos.
A construção foi um processo lento e cheio de decisões, que começou em plena pandemia. Carlos passava noites inteiras no restaurante vazio, observando a luz da lua entrar, ajustando cada detalhe como se afinasse um instrumento. Um projeto tão intenso que trouxe conflitos, até mesmo em sua vida pessoal. Mas hoje, sua parceira Marilina também é sua sócia e encontrou seu lugar no projeto. “Isso alinhou as peças que estavam dispersas. É um negócio familiar; todos nós estamos envolvidos”, afirma.
La Mancha Cocina de Fuegos é uma novidade gastronômica em Sarmiento. Não pretende impressionar com extravagâncias, mas surpreende pela honestidade. O cardápio é um equilíbrio entre o tradicional e o inesperado: carnes cozidas lentamente, peixes de rio, croquetes de dourado. “Não é necessário servir uma empanada em um copo para inovar”, diz Carlos, com um sorriso. Para ele, o objetivo é claro: que a comida convide a viajar, mas sem perder a raiz. “Um prato pode ser uma viagem no tempo, uma lembrança. É algo que você faz para que outro deguste. Isso me emociona”, confessa.
O desenvolvimento do menu foi uma tarefa conjunta. No caminho, ele encontrou orientação com Emilio Sirera, um chef argentino radicado no México que ajudou a delinear o conceito do cardápio. Mas a peça central chegou com Juan Tapia, chef com experiência internacional que deu forma às ideias de Carlos. “Eu digo a ele o que quero e ele o transforma. Ele coloca sua marca, sem limites”, explica.
A chegada de Juan foi também marcada por um forte componente emocional. Depois de seis anos morando no exterior, ele decidiu voltar à cidade onde cresceu. “Eu quero retribuir através da comida um pouco do que me proporcionou na minha formação como pessoa e no meu espírito aventureiro”, diz. “O que eu trago para La Mancha – continua Juan – é a minha experiência gastronômica de 20 anos, especialmente em cocção a fogo, defumados e assados na lenha, e obviamente a paixão que sempre me leva à cozinha da avó Antonia: sempre tento transmitir isso”. “Acredito que estamos gerando uma proposta diferente para a região com produtos frescos, locais, e com uma aposta na criatividade com mudanças semanais no cardápio”, acrescenta.
Carlos fala sobre seu restaurante como se estivesse falando de um filho. “É como ter mais um filho, com todas as decisões que isso implica, com todo o esforço envolvido”, diz. Com 55 anos, e embora não tenha deixado sua profissão de pediatra, ele sente que está começando de novo. “Isso me devolveu a vontade. Me tirou desse vértigo constante da medicina. Agora posso esperar as amoras amadurecerem para fazer uma geléia e oferecer aos clientes. É uma mudança de ritmo, mas também uma forma de reconectar com a vida”, reflete.
No entanto, o restaurante não é apenas um refúgio pessoal. É um projeto vivo, em constante transformação, que cresce com a contribuição de cada pessoa que cruza a sua porta. “Eu não fiz isso sozinho, teve muita gente que ajudou no processo, e essa energia se sente”, diz. Desde os fornecedores que acreditaram em sua ideia até os clientes que se aventuram a experimentar pratos inesperados. Cada história se soma à alma deste lugar. Carlos sente que todas as peças de sua vida finalmente se encaixaram. “É um espaço onde todos encontramos nosso lugar: minha parceira, meus filhos, os cozinheiros. Cada um contribui com algo único”, afirma.
E embora fale com humildade, em seu tom há uma certeza que vai além do presente. “Eu não sei que futuro aguarda este lugar, mas tenho certeza de que aqui eu vou continuar crescendo. Isso é uma via de ida, um aprendizado constante, um espaço onde não paro de descobrir coisas novas”, diz. O restaurante, assim como seus pacientes um dia, o levou a um plano mais profundo: um onde as histórias, as emoções e os sabores se entrelaçam para criar algo que transcende. “Isso é sustentado pelo desejo, as vontades, mas fundamentalmente pelos sonhos. A vida sem sonhos é uma vida vazia”, conclui.
Na La Mancha há mesas privadas e também dois longos tablados para compartilhar. A Mancha Cocina de Fuegos abre às sextas e sábados, à noite. Alfredo Palacios S/N. Capitán Sarmiento. IG: @lamanchacocina. WhatsApp: 2478-444447.