Após os protestos contra a decisão da Secretaria de Educação Nacional, liderada por Carlos Torrendell, de remover o poema de María Elena Walsh “Em uma caixinha de fósforos” e a música do grupo musical Canticuénticos “Há segredos”, por “alto conteúdo de ideologia de gênero” e por conter “elementos que promovem o doutrinamento nas salas de aula”, as autoridades voltaram atrás rapidamente e ambos materiais foram restaurados no portal Educ.ar, como pode ser verificado ao clicar neste link.
Nem o libertário mais otimista teria pensado que o governo venceria a autora de El Reino del Revés na “batalha cultural” agora voltada para a Educação Sexual Integral (ESI). O único antecedente de censura à escritora e pioneira feminista ocorreu em 1979, durante a ditadura militar, após a publicação do famoso artigo “Desventuras no País-Jardim de Infância” no jornal Clarín.
Um dos primeiros a denunciar a remoção de ambos os recursos educacionais foi o deputado Maximiliano Ferraro. “Hoje proíbem em ESI a María Elena Walsh e canções como ‘Há segredos’ de Canticuénticos, ferramentas que permitiram a muitas crianças expressar situações de abuso – escreveu no domingo passado -. Amanhã pode ser a vez de Manuel Puig, García Lorca ou de autores e livros que, segundo algum órgão regulador, ‘perturbam’ nossos filhos. Assim começa a censura: disfarçada de moralidade. […] Os conteúdos não são os que estão desatualizados, os que atrasam são aqueles que tomam essas decisões”.
Em conversa com LA NACION, a escritora María Teresa Andruetto, vencedora do Prêmio Hans Christian Andersen em 2010 por sua obra para crianças e jovens, descreve o recuo do governo como mais uma afronta. “Os cidadãos comuns, incluindo professores, técnicos, especialistas, denunciamos, assinamos petições, nos manifestamos publicamente com leituras ou em nossas redes de comunicação ou em nossos locais de trabalho, mas pouco disso tem efeito nas áreas de decisão política – diz -. É tão grande o desmonte, a devastação de direitos, que causa perplexidade, porque a cada dia surge uma nova causa, uma nova razão pela qual lutar, uma razão que se soma à anterior e assim ao infinito, desde o fechamento de espaços de memória até o desmantelamento de projetos como os da ESI, que tanto contribuíram para a detecção de abuso infantil. No meio disso, canções são proibidas, autores ou cantores ou artistas entram em uma espécie de lista negra. Nunca sabemos até onde se misturam a perseguição ideológica, a maldade, a ignorância ou a estupidez”.
Para a escritora e roteirista Gabriela Larralde, censurar María Elena Walsh é “mexer no DNA de quatro gerações de argentinos e argentinas que cresceram ouvindo suas canções”. “E ignorar que hoje não há escola pública ou colégio privado em toda a Argentina, de qualquer classe social, onde as infâncias não cantam e dançam suas músicas – acrescenta-. A censura a María Elena Walsh ocorreu apenas na ditadura militar e agora. É um fato abominável que é questionado por toda a comunidade educacional e pelas famílias. A remoção dos conteúdos ESI é ilegal, está sendo violado o direito das crianças e adolescentes: seu acesso, no ambiente escolar, ao cuidado de sua integridade e de outros. Há muitos anos, os dados mostram que a ESI tem uma grande aceitação entre professores, famílias e estudantes. As famílias entenderam que ela fornece informações que, de qualquer forma, circulam entre seus filhos. Transforma o sussurro escondido em um corredor em educação ministrada por professores capacitados para isso; eles sabem que aquilo que os envergonha nas escolas pode ser abordado. Os estudantes agradecem”.
A cidade de Buenos Aires se juntou à “cruzada” contra a ESI promovida pelo governo nacional. A vice-chefe do governo portenho, Clara Muzzio, explicou em sua conta no X que os conteúdos seriam revisados a pedido de alguns pais de alunos; outros materiais, disse, estavam “desatualizados”.
“Durante dezenove anos, a lei da ESI permitiu implementar uma educação sobre sexualidade que já acontecia nas escolas, mas de forma informal – diz Larralde-. Nos banheiros e corredores, escondido e sem formação de professores. Qualquer tentativa de violar a ESI é voltar a levar esses temas ao ostracismo, onde ocorrem abusos, violências, apostas, discriminação e gravidezes não desejadas, entre outras questões. Mesmo que removam os conteúdos, as crianças e adolescentes ainda procuram essas informações e hoje têm internet. O que se alcança ao retirar os conteúdos ESI e as capacitações é deixá-los à mercê de um algoritmo. Os conteúdos que o governo tenta impor são de uma editora chamada Logos, totalmente desconhecida no campo educacional, enquanto os conteúdos selecionados ao longo destes dezenove anos representam dezenas de editoras e autores. Um amplo leque para que professores e estudantes possam escolher”.
“A música ‘Há segredos’, com texto de Ruth Hillar e ilustrações de Estrellita Caracol, foi publicada pela Gerbera. Os livros de Canticuénticos fazem parte do catálogo da Gerbera Ediciones, que recentemente recebeu o prêmio de excelência em edição acessível concedido pelo Consórcio de Livros Acessíveis e pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual.
“Em um momento em que é cada vez mais necessário cuidar das infâncias, é muito importante que os materiais que dão ferramentas para trabalhar os eixos fundamentais da Educação Sexual Integral continuem ao alcance de professores e mediadores – diz Fabiana Nola Portillo, diretora editorial da Gerbera-. Desde que tiveram acesso a esses recursos, crianças e adolescentes puderam expressar situações que violaram sua integridade física e psicológica, e os ajudaram a compreender que ninguém tem direitos sobre eles, a não ser eles mesmos. Ter publicado ‘Há segredos’ [$ 13.000], da canção do Canticuénticos, é parte do compromisso que assumimos na Gerbera há dezessete anos: fazer livros inclusivos, acessíveis e respeitar as diversidades”.
Em conversa com este jornal, a vice-reitora da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, a doutora em Educação Graciela Morgade, afirma que as decisões do governo “foram tomadas de forma pouco informada ou baseadas em preconceitos de pessoas que não são especialistas em ESI”.
“Quero acreditar que a ‘batalha cultural’ não inclui a luta contra o abuso sexual infantil ou a violência doméstica – destaca-. Acredito que a revisão de conteúdos proposta pela Secretaria de Educação Nacional especialmente levando em consideração os conteúdos votados em 2018 e os documentos produzidos desde 2006. Obviamente, os materiais educativos sempre podem ser revisados e atualizados, dezenove anos em termos culturais é muito tempo, mas tenho a impressão de que essa revisão que está sendo proposta, novamente, é precipitada, preconceituosa e acredito também que encontrará uma resistência importante em muitos setores da comunidade, porque aqueles que pesquisam sobre a ESI sabem que a vasta maioria das famílias concorda que haja um espaço na escola para falar sobre temas relacionados ao cuidado integral. Com milhões e milhões de crianças nas escolas, é evidente que as famílias apoiaram a ESI; caso contrário, teria havido muito mais resistência. A ESI não é mais do que poder falar sobre sexualidades sem constrangimento e sem a vergonha que às vezes esconde situações de dor e violência”.
Na opinião do pesquisador e professor de Ciências da Educação Guillermo Ramón Ruiz, a lei 26.150 da Educação Sexual Integral, aprovada em 2006, representou “um avanço legislativo em termos de direitos humanos e o início de uma política de Estado que foi continuada pelos diferentes governos”.
“A incorporação da ESI está entre os aspectos mais positivos das reformas educacionais recentes, uma vez que promove uma educação para uma sexualidade responsável, a partir de uma perspectiva de gênero que inclui conteúdos relacionados à prevenção de problemas de saúde sexual e reprodutiva, ao uso de métodos contraceptivos, a questões de identidade de gênero, diversidade sexual, igualdade de oportunidades para as mulheres”, destaca.
A ESI tem sido uma política de Estado, afirma Ruiz. “Em 2008, foram aprovadas as diretrizes curriculares federais; em 2015, foi realizado um diagnóstico de sua implementação; em 2018, foram iniciadas várias ações: a criação de referências institucionais na ESI, a atribuição de pontos aos conteúdos da ESI nos concursos para promoção docente; em 2021, foi lançado o Observatório Federal da ESI como um órgão de monitoramento para garantir a implementação desses conteúdos em todo o país. Essas medidas foram acordadas entre as autoridades nacionais e provinciais que entendiam que o ensino da ESI é parte da formação cidadã e também é entendido como uma política de cuidado”.
Atribui os questionamentos do governo a um “quadro ideológico que combina o libertarismo, como uma expressão da extrema direita, com posturas retrógradas em relação aos direitos humanos: o ‘paleolibertarismo'”.
“Nesse contexto ideológico devem ser colocadas as propostas do governo e das autoridades de algumas jurisdições, como a cidade de Buenos Aires, de revisar e modificar a ESI – conclui Ruiz-. Vale lembrar as declarações da vice-presidente Victoria Villarruel quando qualificou a ESI como uma ‘corrupção de menores’ em um evento no Senado, no qual não participaram especialistas de universidades nacionais. Essas posturas ‘paleolibertárias’ também explicam as críticas à literatura ensinada na educação obrigatória, que sem nenhum fundamento pedagógico ou histórico denunciam um suposto doutrinamento na ideologia de gênero pela leitura de algumas obras distribuídas nas bibliotecas das instituições educacionais. Em nosso país, a política alfabetizadora do Estado deu lugar à promoção da leitura de obras literárias dos mais diversos autores. Para refutar esse suposto doutrinamento, destaquei minha leitura de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, no ensino médio; além de ser uma obra colossal, ela se destaca por conter cenas eróticas narradas com uma descrição detalhada que enriquecem sua dimensão artística”.