No país dos campeões do mundo, uma das grandes fábricas de jogadores de futebol da Argentina não recebe visitas de torcedores, escolas ou público em geral. Também não oferece experiências exclusivas para grupos de turistas. À beira do Caminho Presbítero González y Aragón, em meio a uma região de florestas, lagos e reservas florestais, um modesto portão de grades azuis dá as boas-vindas ao Centro de Treinamento do Boca Juniors, mais conhecido como “Boca Predio”, o famoso complexo da cidade de Ezeiza onde nascem, crescem e se desenvolvem muitos talentos do futebol argentino. Em 2014, a sua construção demandou um investimento de 9,5 milhões de dólares. Apenas em 2024, o clube embolsou oito vezes essa quantia graças às vendas de cinco jovens da categoria de base. O acesso VIP do LA NACION ao local onde o Boca realiza sua pré-temporada de verão e onde centenas de crianças alimentam diariamente o sonho de chegar à Primeira Divisão. Uma bandeira argentina, outra do Boca e uma terceira com a insígnia da AFA tremulam no alto da entrada principal, onde dezenas de torcedores e jornalistas aguardam ansiosos pela chegada dos jogadores. A partir de 2021, o elenco profissional xeneize deixou de treinar na Casa Amarilla para se instalar definitivamente no complexo, com a ideia de que os mais experientes sirvam de exemplo para os mais jovens e os técnicos da Primeira Divisão acompanhem de perto as principais promessas da base. Além disso, busca-se implementar uma mesma metodologia de trabalho em todas as categorias que treinam no local. No início da gestão, por exemplo, Juan Román Riquelme ordenou que cada uma das divisões deveria jogar com um meia armador. “Não é coincidência que três dos cinco técnicos trazidos por Román tenham passado pelas categorias de base”, destaca Diego Soñora, coordenador adjunto das categorias de base do Xeneize. Sebastián Battaglia, Hugo Ibarra e Diego Martínez foram os treinadores escolhidos por Riquelme que deram os primeiros passos como treinadores das categorias de base, enquanto Fernando Gago, o treinador atual, chegou ao Boca com 9 anos e percorreu todo o caminho no clube até sua tão esperada estreia na Primeira Divisão. Gago também está envolvido no projeto: em seus primeiros dias à frente da equipe, ele visitou os garotos da nona divisão e prometeu-lhes uma camisa autografada pelos jogadores caso ganhassem seu jogo por três gols de diferença. A visita ao complexo inclui diversas paradas obrigatórias. Os 13 campos (12 de grama natural e um artificial), os vestiários, a banheira de hidromassagem, a sala de jantar do primeiro andar e a moderna sala de imprensa onde são gravados os conteúdos para as redes sociais do clube e são apresentados alguns reforços. Junto ao Aeroporto Internacional de Ezeiza, o complexo está construído totalmente em uma área de 40 hectares, metade dos quais pertencem apenas aos campos de jogo. O Boca Predio é 50% maior do que La Masia e três vezes maior que o River Camp. Conta ainda com um consultório médico, sala de nutrição, academia de última geração, salão de eventos, sala de reuniões, administração e escritórios para dirigentes, analistas de vídeo e membros do Conselho do Futebol. Atualmente, está em construção um 14º campo de jogo e uma academia mais modesta exclusiva para as categorias menores, pois, entende-se no clube, pode ser contraproducente que um garoto de 14 ou 15 anos tenha as mesmas comodidades que um jogador da Reserva ou da Primeira Divisão. O espaço possui sua história e evidencia as tensões que existem desde sempre entre a gestão de governo de Mauricio Macri e Juan Román Riquelme. Em 11 de junho de 2014, um mês após a última partida do ídolo com a camisa azul e amarela, Daniel Angelici e Carlos Tevez apresentaram o início das obras no terreno concedido ao clube por 30 anos, prorrogáveis por mais dez. A essa altura, as divergências entre o capitão e o presidente do Boca pareciam levar ao abismo. E se algo faltava para tensionar a relação entre ambos, foi Angelici escolher Carlitos, outro ídolo do Xeneize, para anunciar a colocação da pedra fundamental. Pouco depois, o 10 rejeitou a oferta de renovação do presidente e concordou em retornar ao Argentinos, onde jogaria até o final do ano. Em 2017, o complexo foi inaugurado, e embora a ideia inicial fosse batizá-lo de Predio Mauricio Macri, foi o ex-dirigente quem solicitou que esse reconhecimento fosse evitado, “para evitar o personalismo e o messianismo”. Finalmente, em 2019, o trinômio Ameal-Pergolini-Riquelme arrasou nas eleições do Boca e Román edificou seu próprio império no complexo esportivo de Ezeiza. Caminhar pelo complexo é como mergulhar no túnel do tempo: a cada metro que se avança, a presença de uma glória permite reviver os melhores momentos do clube. Juan Román Riquelme, Blas Giunta, Diego Soñora, Walter Pico, Marcelo Delgado, Mauricio Serna, Antonio Barijho, Raúl Cascini, Juan Clemente Rodríguez, Pablo Ledesma e Daniel Díaz são alguns dos personagens centrais da história do clube que se entrelaçam entre o passado e o presente, unidos por um destino comum. O primeiro a chegar ao complexo é justamente Soñora, coordenador adjunto das categorias de base do clube. “Chiche tem as chaves”, brinca Blas Giunta, coordenador geral. Com Riquelme como supervisor geral, a outra parte da mesa é Diego Cinello, responsável pela coordenação dos preparadores físicos. Cinello também tem sua história com o Boca: foi funcionário do clube nos tempos de Alfredo Altieri, discípulo de Julio Santella que trabalhou com sucesso na recuperação de Martín Palermo quando rompeu os ligamentos cruzados em 1999, antes de seu retorno triunfante contra o River. Cinello também fez parte da comissão técnica de Raúl Cascini e Chelo Delgado no Los Andes, durante a curta passagem dos ex-Boca pelo banco de reservas do clube. A lista de treinadores das categorias de base é completada por Silvio Rudman, Matías Giménez, Joel Barbosa, Martín Andrizzi, Matías Arce, Mauro Navas e Enrique Álvarez (o único que não jogou no clube), enquanto outros dois ex-Boca dirigem as equipes de base: Nahuel Fioretto e Claudio Benetti, aquele meio-campista cordobês que conquistou um lugar no coração dos torcedores por seu gol contra o San Martín de Tucumán que garantiu o título do Apertura 92. Entre os ex-jogadores do Boca Predio somam mais de mil partidas pelo clube, mais de 100 gols e quase 40 títulos. Todas as quintas-feiras, um deles dá uma palestra explicativa na sala de imprensa, contando o trabalho realizado nos treinamentos e lances específicos dos jogos, apoiando sua apresentação com vídeos editados. Com o LA NACION como convidado, desta vez é a vez de Chipi Barijho, que se diverte em seu papel de professor e faz piadas antes de expor diante de Giunta, Soñora e os demais treinadores e assistentes do campo. A camaradagem é palpável: um dos presentes pede para voltar a imagem para que todos vejam como o Chipi, à beira do campo, observa toda a ação ao seu redor e comemora o gol como um torcedor. Todos riem. “É fundamental para os garotos conviver com ex-jogadores como Chipi, Cata (Díaz) ou Clemente (Rodríguez), que conquistaram tudo com este clube. Embora a maioria de nós seja mais velha, eles procuram você na internet e rapidamente te conhecem”, destaca Giunta. “Sempre digo aos garotos: ‘vocês sabem o que eu daria para ter tudo isso? Aproveitem estar aqui porque não há outro clube que ofereça essas comodidades’. Não é à toa que os jogadores que surgem no clube são tão procurados. Quando eu treinava na Segunda Divisão e me ofereciam um jogador do Boca, eu dizia sim imediatamente, sem hesitar”, acrescenta. O complexo começa a se encher a partir das 8. Crianças de diferentes idades e pontos de Buenos Aires chegam de carros particulares, vans e ônibus com rotas fixas que o Boca disponibiliza para aqueles que não têm como se locomover por conta própria. Lá, além de com seus amigos, compartilharão a manhã com estrelas mundiais como Edinson Cavani, Marcos Rojo, Sergio Romero e o próprio Gago. Familiares e representantes de jogadores têm proibida a entrada nos treinos. No entanto, é permitido que entrem nos dias de jogo. Para proporcionar mais conforto aos pais enquanto os filhos treinam no complexo, o clube planeja unificar as duas arquibancadas do campo principal e construir um café sob elas. Também haverá mais dormitórios (atualmente são oito, usados principalmente pelos funcionários) para aqueles que viajam do interior do país para fazer testes. Foi cogitada a possibilidade de adicionar uma escola, mas entenderam que não seria saudável para as crianças permanecer tanto tempo no complexo. Desde a posse de Riquelme como dirigente, 40 jogadores entre 17 e 21 anos viram o sonho de estrear no Boca se tornar realidade. Em números, um a mais do que nos oito anos de Angelici, apesar de 13 desses jovens terem sido promovidos devido ao isolamento obrigatório do elenco profissional, após a briga corpo a corpo com jogadores do Atlético Mineiro, seguida da eliminação nos pênaltis nas oitavas de final da Copa Libertadores 2021. Joaquín Ruiz, meio-campista de 18 anos, foi o primeiro a jogar sob o comando técnico de Fernando Gago; enquanto Camilo Rey Domenech, meio-campista que disputou o Sul-Americano Sub 17 de 2024, está participando da pré-temporada com a equipe profissional e mostrou suas habilidades no amistoso que abriu o ano, contra o Juventude, em San Nicolás. O reconhecimento é internacional. Em novembro de 2024, o observatório de futebol do Centro Internacional de Estudos Esportivos (CIES) destacou as categorias de base do Boca como uma das mais prestigiadas do mundo. O organismo sediado na Suíça avaliou a quantidade de jogadores em atividade formados por clubes que participam das 49 ligas mais importantes do planeta, e colocou o Xeneize em segundo lugar nesse ranking (93 jogadores), muito perto do líder Benfica (94). Curiosamente, ambos os clubes se enfrentarão na fase de grupos do próximo Mundial de Clubes. “Quando vemos os garotos jogarem, a primeira coisa que avaliamos é a técnica individual. Mesmo que sejam magrinhos ou pequenos de estatura, sabemos que fisicamente podem ser potencializados. O mais difícil de encontrar, e mais nestes tempos em que tudo é mais mecanizado, são jogadores com boa técnica”, afirma Giunta. “O objetivo dos olheiros e treinadores é descobrir e formar jogadores talentosos. Antigamente, era dada muita atenção às condições físicas dos jogadores. Se um zagueiro media 1,80 e chuteira a bola para frente, ele passava em qualquer teste. Hoje o futebol mudou. Todos atacam e todos defendem. E então todos têm que saber jogar e também se movimentar na marcação. Román faz muito hincapié nesse sentido: para jogar no Boca, o jogador tem que ser talentoso”, acrescenta Soñora. A poucos metros da entrada do complexo fica a sala de Nutrição, sob responsabilidade da licenciada Florencia Minghetti. A alimentação é um fator fundamental para o desenvolvimento do jogador de futebol. Como muitas crianças vêm de lares humildes, o primeiro passo é adaptá-los nutricionalmente ao peso e à estrutura física própria de suas idades. Isso é conseguido com um plano personalizado, dietas especiais e suplementos para os casos em que os jovens não chegam com uma base sólida. Uma vez que alcançam as condições adequadas, o acompanhamento nutricional é de acordo com as idades deles, já que ainda estão em fase de crescimento. Enquanto os garotos da sétima categoria aguardam na fila em frente ao escritório de Minghetti para pegar seu suplemento personalizado e hidratação, passa Barijho, seu treinador. Ele os observa, ri e grita: “Estes não são meus garotos, são meus guerreiros!”, e segue seu caminho. 100% dos jogadores tomam café da manhã e almoçam no clube, junto aos coordenadores, comissões técnicas e auxiliares de cada categoria. Recentemente, e por iniciativa de Riquelme, uma vez que as crianças deixam a sala, os funcionários do complexo recebem o mesmo lanche e comem no mesmo local que os jogadores das categorias de base. Doze treinadores, seis preparadores físicos, duas nutricionistas, quatro médicos e um psicólogo compõem a base do futebol juvenil do Boca. E a isso se somam a equipe de analistas de vídeo e aqueles que ajudam os jovens a realizar suas tarefas escolares. “A formação dos jogadores vai muito além do que acontece no campo de jogo, a preparação é integral em todos os aspectos”, destaca Soñora. Chiche é uma das cabeças do projeto que teve seu ponto alto entre julho e setembro de 2023, com a conquista da Copa Libertadores e da Copa Intercontinental Sub 20, com jogadores hoje profissionais como Lautaro Di Lollo, Mauricio Benítez e Jabes Saralegui. Tudo isso é mantido pelos números. Em 2024, o Boca vendeu cinco jogadores das categorias de base por mais de 72 milhões de dólares: 10 por Valentín Barco para o Brighton da Inglaterra, 21 por Aaron Anselmino para o Chelsea da Premier League, 20 por Ezequiel Fernández para o Al-Qadisiyah da Arábia, 6,8 (mais 500 mil em bônus) por 80% de Luca Langoni para o New England Revolution dos Estados Unidos e 15 pela saída de Cristian Medina para o Estudiantes de La Plata, por meio do grupo empresarial do norte-americano Foster Gillett. Embora o Boca geralmente invista fortunas em jogadores mais velhos e com pouco valor de revenda (Facundo Roncaglia, Juan Ramírez, Chiquito Romero, Darío Benedetto, Cristian Lema, Gary Medel, Lucas Janson, entre outros), é talvez a bandeira mais emblemática da gestão esportiva de Riquelme. Recentemente, o lateral direito Dylan Gorosito (18 anos) e o volante Milton Delgado (19) foram confirmados por Diego Placente como parte do elenco argentino que estreará no final deste mês no Sul-Americano Sub 20 da Venezuela. Para a Sub 17, por sua vez, foram convocados o goleiro Valentín Perroud, o zagueiro Matías Satas (que também participou do Sul-Americano Sub 15 da Bolívia) e os atacantes Joaquín Piñeyro e Román Ferreira. O sol se põe em Ezeiza e as luzes do complexo começam a se acender. Lá em cima, no primeiro andar do prédio central, o Conselho de Futebol trabalha na busca por reforços para a equipe profissional, e também os treinadores e profissionais das categorias de base analisam vídeos e planejam em conjunto os exercícios de pré-temporada do Boca. Em 12 de junho passado, o clube aprovou um investimento de $11.696.000.000 (cerca de 11.500.000 de dólares) para a construção de um hotel de concentração em Ezeiza que poderá ser utilizado pela equipe profissional e também, eventualmente, por algumas categorias de base. Um toque de distinção para um complexo que a cada ano se sustenta com sua própria matéria-prima. A visita da