“O Criador de Huemules no Bosque Andino Patagônico de Chubut.
“Vocês veem?”, pergunta Lucas Thomas enquanto focamos o olhar em direção ao bosque. Entre as lengas e os ñires, os diferentes tons de marrom se confundem, as astas mal se suspeitam e, apenas quando ele vira a cabeça, o vemos. Sentado e tranquilo, Shehuen não se esconde. Ele está no recinto 3 da Estação de Reabilitação e Criação do Parque Protegido Municipal Shoonem, nos arredores dos lagos La Plata e Fontana, ao sul de Chubut. E talvez seja porque ele se camufla sem querer, que muitos o chamam de “o fantasma dos Andes”.
“O huemul (Hippocamelus bisulcus) é um cervídeo muito confiante que permite a aproximação como nenhum outro. Por isso ele fica tão exposto”, comenta Natalia Demergassi, veterinária da Fundação Temaikén que trabalha há quatro anos com a Fundação Shoonem (que significa huemul na língua aonikenk) para reverter a extinção dessa espécie nativa e emblemática de nossa Patagônia. “Não é um cervo comum. É um animal espiritual que encarna a essência patagônica. É como o gaúcho santacruzense: tímido e silencioso. É ‘o’ cervo entre os cervos”, acrescenta Miguel Escobar, presidente da Fundação Shoonem, enquanto caminhamos pela floresta.
Com uma média de peso entre 70 e 80 quilos, o huemul é maior que o pudu, de 9 quilos, e menor que o veado de pântano, que chega a 120 quilos. Os três são nativos, mas durante anos foram deslocados por espécies introduzidas, como o Axis e o veado-vermelho, de temperamento mais beligerante. Todos possuem astas – desde que sejam machos – que perdem e recuperam a cada ano e que são fundamentais para competir pela atenção das fêmeas na época de reprodução. Os huemules costumam descer até a costa dos lagos em busca de alimentos.
Monumento Natural Nacional (segundo a Lei 24.702/96), o huemul habita a floresta andina patagônica que percorre as províncias de Neuquén, Rio Negro, Chubut e Santa Cruz, ao longo de 1800 km. Isso representa uma grande perda de território, considerando que o paleontólogo John Bell Hatcher (1861-1904) encontrou registros do huemul na estepe, em Bajo Caracoles, Santa Cruz. “Os censos populacionais de huemul não são atuais, mas estima-se que na Argentina restem cerca de 500 exemplares, divididos em aproximadamente 60 grupos. No Chile, por sua vez, há cerca de 1000”, destaca Natalia pouco antes de Miguel ressaltar que “são 1500 na Patagônia”, para enfatizar a importância de abordar essa questão de forma coordenada com o país vizinho. embora seu temperamento tranquilo e ingênuo tenha contribuído para colocá-lo em perigo de extinção, várias são as razões que levaram a essa situação atual. Segundo os especialistas, o avanço da fronteira produtiva gerou competição por pastagens e o tornou exposto. “É um animal que não foge. Portanto, pode ser atacado por cães e caçado com uma faca pelo ser humano”, indica Miguel citando Clemente Onelli em seu livro Trepando os Andes. Nesse sentido, também foi contraprodutiva a introdução do veado-vermelho, que se reproduziu indiscriminadamente depois de ser trazido da Europa para impulsionar os campos de caça de grandes peças. No entanto, há mais razões que se tornam evidentes e são reforçadas pelas pesquisas conjuntas que as fundações Shoonem e Temaikèn realizam na Estação de Reabilitação e Criação do Parque Protegido Municipal Shoonem.
Fundada em 2014, a estação existe graças à contribuição de outra ONG fundamental, que é suíça e se chama Fundação Erlenmeyer. Está localizada em uma propriedade de 110 hectares com cercas e perímetros bem demarcados, onde os huemules que foram previamente capturados em ambientes selvagens recebem suplementação alimentar – com blocos mineralizados e fardos de pastagem -, se reproduzem e são estudados para reverter sua extinção. Shehuen é o primeiro huemul nascido no centro.
Lucas Thomas e Fabián Jaramillo, da Temaikèn, são responsáveis pela manutenção do centro e pelo dia a dia dos animais, juntamente com Miguel Escobar, grande impulsionador do local e que também tem sua casa na reserva. Na estação, há onze huemules, cinco dos quais nasceram lá. Na área 1, há duas fêmeas reprodutoras adultas com um macho, dois filhotes nascidos no ano passado e um este ano. Os adultos se chamam Plata, Ceci e Coirón. Na área 2 estão Werni, Juana e Maitén, que foi transferida para o centro neste inverno. Além disso, há um filhote de Juana. E na área 3 está Shehuen, o jovem macho em idade reprodutiva que avistamos ao caminhar pela estação e que foi o primeiro filhote nascido no centro. “Nasceu em novembro de 2022 porque a mãe foi capturada prenha”, comenta Natalia. Como e quando eles os capturam? No inverno e quando neva muito, pois os huemules descem até as margens do lago para se alimentar da vegetação. No verão, por outro lado, permanecem nas montanhas. “A captura é feita a partir de uma embarcação no lago, com um dardo que é disparado a 11 metros do animal e que tem uma combinação anestésica para fazê-lo dormir. Então nos aproximamos, colocamos o colar de monitoramento VHF, fazemos as amostras e o carregamos para trazê-los para o centro”, explica Natalia. Ela acrescenta que o colar de monitoramento, projetado com base no tamanho e peso do animal, emitirá um sinal que é captado por uma antena e permitirá localizá-lo dentro do campo. Tudo é feito prestando contas à Direção de Flora e Fauna Silvestre de Chubut, que a cada ano renova as permissões e recebe relatórios sobre o que e como estão trabalhando.
“Encontramos muitos animais magros, envelhecidos e com problemas em seus dentes. Eles têm um grande déficit de minerais. Os patógenos fecais do gado podem tê-los afetado”, indica Natalia sobre o avanço das pesquisas. “Observamos que a desnutrição está desempenhando um papel fundamental na extinção do huemul. Acreditamos que tem a ver com o fato de que, devido ao avanço da pecuária, descem menos em direção aos pastos estepários e ficam presos nas áreas de verão, no alto da floresta. Então eles comem sempre a mesma coisa”, aponta Miguel. Natalia, criada em um apartamento em Avellaneda, pisou em uma fazenda pela primeira vez quando entrou na faculdade de veterinária. Ela sempre gostou e queria ajudar os animais. Há 15 anos, entrou na Temaikèn e se apaixonou pelos cervídeos, descobrindo-se preocupada com a conservação dos veados de pântano. “Me faz feliz trabalhar na preservação das espécies. Faz sentido estar no meio da neve e coberta de água, tentando tirar sangue de um animal para estudá-lo e assim ajudá-lo”, reflete Natalia. Miguel segue o raciocínio dela. Diz que estamos vivendo uma grande catástrofe ambiental e que os animais não merecem sofrer o que estão sofrendo. Quinta geração de patagônicos, ele comemora que os centros de reprodução de huemules – aqui e no Chile – sejam uma estratégia viável para reverter sua extinção. “Temos chances de ver a reintrodução do huemul em seu habitat? “É nosso objetivo final. Nos preocupa, mas ainda falta muito para que possamos fazer isso. Precisamos ter plantéis e terrenos viáveis, livres de todas as ameaças. O momento chegará…”, diz Miguel. Para se juntar como voluntário ou colaborar financeiramente com o projeto, entre em contato com a Fundação Temaikèn.”