“O bairro de Belgrano, casa de telhas”. A frase imortalizada por Cátulo Castillo no reflete muito a realidade atual desta zona da cidade de Buenos Aires. As obras em construção se tornaram parte da paisagem e as típicas casas estão dando lugar aos prédios altos. Em algumas áreas do bairro, algumas ainda sobrevivem graças a alguma forma de proteção patrimonial. Mas são cada vez menos.
“Com meu marido nos mudamos para cá de Boulogne por uma questão de segurança e porque gostávamos do bairro de casas baixas e arborizado. Nos parecia um lugar tranquilo. Mas há alguns anos vemos como todas as casas estão sendo destruídas para dar lugar a prédios imensos, é muito triste, é outro bairro”, diz Mônica, moradora da região de Virrey Loreto e Arcos, que vive dias agitados com construções por todos os lados. É a área do bairro de Belgrano que fica entre a avenida Cabildo e Luis María Campos, perto do limite com Palermo. De fato, na quadra de Arcos 1400, se transita entre caçambas e o movimento constante de operários, pois quatro casas foram recentemente tapadas para dar lugar a uma nova obra que se junta a outra na mesma quadra.
“Já não me surpreende, como moradora encaro isso como algo natural”, diz Pilar, que as observa da calçada em frente onde se ergue uma mega torre. “É verdade que são casas lindas, mas entendo que, às vezes, são difíceis de manter. De qualquer forma, acho que deveria haver um meio termo e os novos prédios deveriam conservar um pouco da arquitetura original que caracteriza o bairro”, acrescenta. Enquanto isso, Natalia Kerbabian, artista plástica, arquiteta e criadora do projeto cultural de registro da memória demolida chamado Ilustro para não esquecer, também mora no bairro e assegura que já iniciou uma ilustração sobre essas casas com destino incerto.
“O que acontece com essas quatro casas que foram tapadas nos impacta profundamente, porque o que geralmente vemos de forma gradual acontece de repente. Geralmente estamos tão imersos na correria diária que não apreciamos, mas acontece em todos os bairros. A destruição é contínua e sistemática e não tão gradual como pensamos”. E acrescenta que se trata de uma questão de cooperação e de harmonia até biológica, uma questão de qualidade de vida, de recepção de luz, de sol, de qualidade ambiental. A isso se soma todo o acervo cultural e histórico”, acrescenta a artista.
As casas mencionadas contam com uma proteção cautelar, destinada a proteger aqueles imóveis que representam uma referência formal e cultural da área. Essa medida busca preservar a integridade e imagem de um edifício e, geralmente, protege a fachada enquanto permite intervenções em seu interior. De acordo com o que pôde averiguar, essas casas seriam preservadas, dada sua incorporação no projeto arquitetônico que será desenvolvido no local, de modo que não correriam perigo de demolição.
María Laura Escobar, moradora desde 2001, explica que Belgrano vive entre o progresso e a perda de identidade há cerca de 15 anos. “Costumava ser um oásis de casarões senhoriais, ruas arborizadas e uma atmosfera residencial, que hoje se encontra imerso em um boom de construções que ameaça apagar sua essência histórica e identidade”, adverte. E acrescenta que a febre dos empreendimentos imobiliários transformou lotes que abrigavam emblemáticos casarões de estilo francês ou italiano em torres de apartamentos modernos, vidrados e impessoais. “Cada demolição destas residências tradicionais significa não apenas a perda de um patrimônio arquitetônico, mas também um golpe na memória do bairro. As antigas residências, com seus detalhes em madeira, vitrais e jardins frondosos, eram testemunhas silenciosas de uma época em que Belgrano combinava elegância e tranquilidade. Hoje, em seu lugar, erguem-se edifícios que priorizam a densidade e o retorno econômico, muitas vezes sem diálogo com o entorno”, explica. E ela garante que os moradores estão preocupados com como vai repercutir “o que não se vê”, como esgotos e tubulações, ou seja, infraestrutura que deveria ser levada em conta paralelamente ao que está sendo construído “acima”.
Silvia Vardé, professora de História e presidente da Junta de Estudos Históricos de Belgrano, conta que o bairro era formado por casarões, alguns eram palacetes do início do século XX, muitos deles construídos com materiais trazidos da Europa. Isso desenhava uma paisagem muito semelhante ao que é atualmente o setor conhecido como Belgrano R, replicado por toda a área. Isso perdurou até a década de 60, quando começaram a ser construídos prédios de apartamentos de sete ou oito andares, em formato de andares ou meio andares. “Com o passar dos anos, se multiplicaram e a muitos começaram a ser adicionadas garagens. Eram esses prédios que ainda vemos que têm espaço entre as divisas”, explica. No final dos anos 60 e início dos anos 70 foram erguidos os famosos prédios-torre com garagem e jardim ao redor.
“Mas o grande boom imobiliário em Belgrano começou nos anos 90 porque morar em Belgrano se tornou um símbolo de status, quase imprescindível para quem pretendia ocupar um lugar mais elevado na escala social”, diz Vardé. A partir daí foram sendo acrescentadas construções com grandes entradas e recepções, todo tipo de serviços como piscina, lavanderia, salão de festas, etc. Vardé sustenta que isso acarretou na perda da fisionomia do bairro que, além disso, agora está superpovoado.
Por sua vez, Marcelo Magadán, arquiteto especializado em patrimônio histórico, também reflete sobre as mudanças que levaram Belgrano de uma área de chácaras e casarões ao bairro atual. O especialista lembra que, na primeira metade do século XIX, a área era cruzada por um caminho que saía de Buenos Aires e seguia para o norte. Aquela Buenos Aires não era muito mais do que um conjunto de quarteirões localizados onde hoje seria o centro da cidade. “O traçado desse caminho coincidia com o da atual avenida Cabildo e, embora houvesse algumas construções dispersas na área, a ocupação contínua e sustentada do bairro começou em meados do século XIX, a partir da fundação de Belgrano que, junto com Flores, eram cidades pertencentes à província de Buenos Aires até o final da década de 1880”, detalha Magadán.
E afirma que as diligências, depois o trem e mais tarde o metrô, foram os meios de transporte que deram a conexão necessária para que a área se consolidasse e crescesse ao longo dos anos. Gradualmente, a ocupação se estendeu primeiro horizontalmente, com a ocupação de terrenos livres e, a partir das décadas de 1950 e 1960, verticalmente, o que acentuou a tendência a substituir as construções baixas existentes por prédios altos.
“Nesses últimos anos, essa situação foi potencializada pela normativa de planejamento vigente cujas repetidas modificações serviram sempre para aumentar os índices construtivos, o que se traduz, basicamente, em aumento das alturas permitidas. O resultado disso podemos ver quando caminhamos pelas ruas de um bairro onde poucas construções antigas subsistem e onde os prédios altos, em torre ou entre as divisas, foram apagando a linha do horizonte e ocultando a luz solar”, conclui Magadán.
Para Escobar, além do avanço urbano, o desafio é encontrar um equilíbrio que permita evoluir sem esquecer o que um dia tornou único este cantinho da cidade.