Há palavras que surgem para nomear o que já está acontecendo. Neobodegón é uma delas. Mas não se trata de uma moda ou de um rótulo de marketing, mas sim de um gesto geracional. É voltar às origens, olhar com carinho as receitas herdadas e se atrever a reinventá-las com liberdade. O que chamamos hoje assim é apenas uma forma contemporânea de fazer a culinária portenha. Com raiz, com memória, mas também com identidade própria.
“A boa cozinha no mundo está cada vez mais ligada ao entorno”, afirma Cayetana Vidal, crítica gastronômica e coautora juntamente com Silvina Reusmann de Guia não definitiva do morfi portenho. “Acredito que a pandemia teve muito a ver: começou-se a olhar mais para dentro, a valorizar o produto nacional e a recuperar nossas próprias receitas”. E acrescenta: “Muitos desses espaços nasceram nesse contexto, pelas mãos de filhos, netos ou cozinheiros que se reencontraram com sua história familiar. Mas essas novas gerações não são tão rígidas em seguir as receitas tradicionais, mas se animam a recriá-las”. Os neobodegones são isso: bares com pratos conhecidos e surpresas inesperadas. Clássicos como a tortilla, a milanesa ou a provoleta convivem com embutidos caseiros, fermentos, peixes curados, guisados autorais e sobremesas que mesclam tradição com diversão. O produto é cuidado, o serviço é pensado, o ambiente é refinado. Há louça bonita, carta de vinhos com sentido, coquetelaria própria e um olhar que foge do formalismo, mas não do detalhe. A seguir, sete exemplos que refletem isso perfeitamente. O que começou como um restaurante de portas fechadas em Paternal está há quatro anos de sucesso em Chacarita.
Condarco nasceu como um restaurante de portas fechadas na casa de Pablo Fridman, em plena Paternal – e sobre a rua Condarco precisamente -, e foi o boca a boca que o impulsionou para uma versão ampliada em Chacarita. Embora agora receba muito mais comensais e já não conheça a todos pelo nome, o espírito continua o mesmo: “um lugar para compartilhar com amigos, onde se possa comer e beber muito bem”. A tortilla de batatas, a milanesa de lombo e o patê ou os bolinhos coexistem com pratos mais ousados como o curry amarelo de camarão, as gírgolas grelhadas ou as croquetas de espinhaço com demiglace e molho tártaro. Tudo é elaborado com produtos frescos, técnicas precisas e uma lógica de petiscos que propõe compartilhar. “Gostamos de nos adaptar às mutações da cozinha: mudam os produtos, as formas de comer, e nos parece interessante acompanhar esse movimento”, aponta Fridman.
O vermute é um clássico para acompanhar os diferentes pratos. Ao cardápio noturno agora se soma um menu executivo ao meio-dia (onívoro ou vegetariano, dependendo do dia), além de uma pequena seleção de pratos especiais para os sábados ao meio-dia. A ambientação, resolvida com referências de cafés nórdicos, pisos de granito e mesas de mármore, gera um clima descontraído e acolhedor. “Fomos montando com coisas que gostávamos e encontrávamos; a iluminação, por exemplo, me parecia fundamental para criar um clima”, conta Fridman, que também se apoiou muito em outro dos sócios, Eduardo Álvarez, artista plástico. Embora Fridman admita que nunca entendeu completamente o que é um neobodegão, reconhece que muitos os classificam nessa categoria. “Pessoalmente, não compartilho a necessidade de rotular tudo. Para mim, a cozinha é dinâmica”, diz. Por enquanto, no Condarco são feitos clássicos portenhos e reinventados com sensibilidade e técnica, em um local luminoso onde tudo convida a ficar um pouco mais.
O cardápio da Casa Parra resgata influências da cozinha caseira e também inspiração internacional. A história da Casa Parra começa com uma amizade e sem roteiros gastronômicos. “Três amigos sem experiência prévia em gastronomia, mas com muita vontade de ter um lugar que represente nossa ideia de sair para comer: poucas pretensões, porções generosas, simples mas com um toque especial”. Assim nasceu este restaurante em Colegiales que se define como o ponto de encontro entre um bistrô moderno e um neobodegón. Desde o cardápio até o ambiente, tudo foi pensado para que o comensal se sinta em casa. Durante a reforma, conservaram pisos calcários, janelas antigas e portas originais, e desenvolveram o coração do espaço ao redor de uma parra que literalmente atravessa a cozinha e dá nome ao espaço. Essa calor buscada também se transfere para a proposta culinária: pratos honestos, saborosos, que evocam sabores familiares com conhecimento atual. “Queríamos que fosse um lugar onde você pudesse vir com amigos ou em casal, e sempre se sentir confortável”, explicam seus criadores.
O restaurante é localizado em uma casa reformada na qual foram mantidos detalhes de época, desde os pisos calcários até a parra que dá nome à proposta. O cardápio, liderado pela equipe de cozinha de Marco Suárez, é curto mas bem pensado, com receitas que resgatam influências da cozinha caseira, da tradição latino-americana e de alguns toques europeus. No cardápio de outono destacam-se pratos pouco comuns como o bobó de camarões (um ensopado cremoso de origem brasileira) ou o risoto de bochecha, que resumem essa ideia de sabor profundo e reconfortante. Mas como bom neobodegón, também não faltam clássicos como bolinhos, bife de chorizo à milanesa napolitana com purê ou pudim com doce de leite e creme. “Não há figuras na cozinha, como em nossa equipe: todos desempenham um papel”, dizem. E esse espírito coletivo reflete-se também no serviço e na experiência geral, com atenção aos detalhes, pratos que contam histórias e uma identidade que mistura técnica, nostalgia e o convite para ficar por um bom tempo.
Um alegre e fresco entradinha dá as boas-vindas ao Puchero. Em uma esquina luminosa de Villa Luro, Puchero recupera a alma dos clássicos portenhos entre ensopados, cozidos e sobremesas longas e apresenta-os com um olhar atual: design cuidado, técnica precisa e um amplo cardápio que combina tradição, produto e sabor. “Não se trata de replicar a nostalgia, mas sim de interpretá-la com identidade própria”, afirma Carlos Apollonio, um dos sócios. “Para nós, Puchero é o cantinho onde o sabor e a memória se sentam à mesa”. O cardápio é generoso e eclético, há desde empanadas de carne assada, pastéis caseiros e provoletas com pancetta, até risotos (como o de polvo espanhol ou o de beterraba), chipá recheado de moelas crocantes com ovo poché, milanesas XL e sobremesas como o cheesecake de pistache, a Copa Puchero com banho de ouro ou o pudim misto da casa. Além disso, há um bar de vermutes onde reinam os clássicos: Negroni, Garibaldi, Cynar Julep.
A estética também conta. O espaço é todo em madeira com molduras, uma porta celeste restaurada, louça distinta e plantas que sobem desde o primeiro andar. Tudo foi pensado para criar um ambiente acolhedor e familiar, mas sofisticado ao mesmo tempo. Também há uma adega oculta para degustações especiais, um terraço ao ar livre e um bar adjacente (The Book) para estender a noite com bons coquetéis. A proposta é conectar com o simples, com pratos memoráveis que conectam com lembranças e se resignificam a cada visita. O pátio andaluz é um dos setores mais elogiados do local.
Embora compartilhe muitas características dos neobodegones, a verdade é que Abreboca foi pensado como uma neopulpería, uma reinterpretação contemporânea desses espaços crioulos onde a comida, o vinho e a conversa faziam parte de uma mesma cena. “Pensamos nas pulperías como o grau zero da restauração na Argentina”, aponta Matías Sapienza, um dos sócios. Em uma casa centenária de Chacarita, encontraram o cenário ideal para expressar sua busca: um espaço com pisos originais, vitrais feitos à mão, uma estante que evoca as antigas mercearias e uma instalação com plantas nativas que reforça o vínculo com o criollo. No pátio, sob uma parra que dá sombra, uvas e folhas para doces e pratos de estação, convivem frases do Martín Fierro com um mural feito pela histórica fábrica Cattaneo & Cía, a mesma que desenhou parte dos murais do metrô portenho. Tudo contribui para a atmosfera de um restaurante que não busca apenas alimentar, mas também emocionar.
O local do Mondongo & Coliflor tem alma de bairro e espírito de bodegón. “Não temos presuntos pendurados, mas sim vermute artesanal, embutidos caseiros e pratos que homenageiam o que fomos sem disfarçar”. Assim define Cabito Massa Alcántara, chef e sócio do Mondongo & Coliflor, esta cantina que resgata a alma dos bodegones portenhos com uma pegada contemporânea. Em uma esquina clássica de Parque Chacabuco, este local com mais de cem anos de história foi reanimado por uma equipe que busca imprimir sabor real, sem fogos de artifício: cozinha direta, saborosa, sem adoçantes nem rótulos desnecessários. “O nosso é cozinha de verdade”, repete Cabito. E essa sinceridade perpassa toda a proposta. Desde a carne escolhida a dedo até as linguiças e morcilhas de receita própria, cada produto tem rastreabilidade e caráter. O cozido de mocotó, a polenta com bochecha ao malbec, o ossobuco de porco braseado durante oito horas e o emblemático aligot são apenas algumas das preciosidades que compõem um cardápio que respira cozinha caseira com técnica e respeito pela matéria prima. “Nada é mais importante do que o produto. Para nós, a cozinha começa aí”.
O cardápio combina clássicos como tortilla de batata, empanadas, revuelto gramajo ou milanesa napolitana com pratos menos frequentes: sorrentinos de couve-flor, guarnições como batata doce chumbo ou couve-flor gratinada, e sobremesas que oscilam entre a nostalgia e a descoberta: pudim misto, mousse de chocolate, creme brûlée, affogato com Baileys. Tudo pode ser harmonizado com vinhos nacionais, vermute caseiro ou cervejas clássicas. Enquanto isso, o local tem alma de bairro, com mesas de ferro e madeira, calçada dupla e uma ambientação que respeita a essência bodegonera. A cozinha é feita à vista, os conservas são elaborados no próprio restaurante e a cada dia é oferecido um menu acessível. “Acreditamos que a beleza está no sabor e não em ajeitar as coisas com pinças”, resume Cabito. A paleta de cores do Laserio Cantina evoca a bandeira italiana.
Desde criança, Federico Norcini sonhava em ter seu próprio restaurante. Esse desejo finalmente tomou forma em setembro de 2023, quando abriu as portas do Laserio, um projeto familiar que combina a acolhida de uma cantina italiana com a criatividade de uma cozinha jovem e entusiasta. “Sem dúvida somos um neobodegón”, argumenta Norcini, proprietário e responsável gastronômico, “nos identificamos com o tamanho das porções, o tipo de atenção e em manter muitos pratos clássicos, mas acrescentando nossa marca”. O cardápio se divide em dois grandes caminhos: de um lado, os clássicos que todo bom bodegón deve ter, como bolinhos de legumes, empanadas, tortilla de batata; e, por outro, criações que exploram técnicas, sabores e apresentações mais contemporâneas. Vieiras à parmesã com creme de whisky, gírgolas em tempura com purê de couve-flor e molho hoisin, ou truta com risoto de quinoa são alguns exemplos dessa busca por fazer algo próprio sem perder a raiz. O bife à milanesa com fideos em creme de alho é um sucesso, assim como a bondiola braseada com purê de batata doce ao toffee. Mas o grande protagonista do cardápio é o vulcão de chocolate branco e pistaches: se ele vem à mesa, é impossível não tirar uma foto.
A ambientação responde a um trabalho cuidadoso, nascido de anos de observar referências e adicionado ao trabalho do arquiteto, que soube traduzir desejos em detalhes concretos. A paleta de cores evoca a bandeira italiana sem ser literal, e tudo convida a se sentir confortável: seja em um jantar com amigos ou em um almoço informal, o Laserio se apresenta como um espaço onde se pode comer bem, sem pretensões, mas com personalidade. Em uma esquina de Colegiales, Ostende evoca a memória emotiva. Localizado em uma luminosa e arborizada esquina de Colegiales, Ostende nasceu com uma missão clara: reconectar com a memória emotiva de quem cresceu perto de uma mesa comprida, com pratos do mar, massas caseiras e sobremesas intermináveis. “Além do conceito, o importante é que se reivindica o bodegón, que é parte de nossa cultura e tradição. Nós o atualizamos com técnicas contemporâneas e produtos melhor selecionados”, explica Juan Manuel Boetti Bidegain, um dos sócios do projeto, sobre a ideia de ser um neobodegón. Desde sua abertura em junho de 2023, o Ostende se propôs a homenagear os bodegones de praia e as cozinhas familiares com as quais muitos cresceram. O nome, claro, remete àquele mítico balneário da Costa Atlântica, mas também a uma ideia de refúgio, de encontro. No salão principal, na calçada ou em sua terraça ao ar livre, a ambientação remete aos anos 70, entre mesas de fórmica verde, cadeiras retrô reversionadas, jogos de Scrabble, bolas de praia e vitrines com objetos vintage. Os pratos mais entrañables chegam à mesa do Ostende.
A carta oferece uma leitura atualizada de pratos queridos. Lula frita com aioli, provoleta com chutney de tomate e peras, bife à milanesa para um ou para compartir, risoto de cogumelos de pinheiro, arroz crocante com camarões ou peixe do dia com purê de couve-flor, espinafre e pangrattato. De sobremesa, há tiramisú, brownie morno com sorvete, caramelo salgado e pistaches ou um amendoim com praliné e chocolate meio amargo que abrange todos uma época. A proposta se completa com coquetelaria de autor (como o Vermute Ostende, com salmoura de mar e blend próprio) e uma carta de vinhos com foco em cepas patrimoniales como a criolla, o semillón ou a bonarda. O resultado é uma experiência cuidada, saborosa e descontraída, onde a nostalgia é celebrada sem solenidade e a cozinha fala com sotaque argentino.