Bariloche: como nasceu entre pioneiros, expedicionários e amantes da natureza

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Esquiadores exploram o Cerro López. Provavelmente, fazem parte da expedição liderada por Hans Nöbl, contratado profissionalmente pelo Parques Nacionais, através de Angélica Gainza Paz, para avaliar o local onde posteriormente se desenvolveu o que viria a ser o Cerro Catedral.

Antes mesmo de ter um nome, Bariloche já era habitada. Na área da Laguna El Trébol, na atual reserva municipal, foram encontradas camadas arqueológicas que documentam a presença humana há mais de 10.000 anos. Nas camadas mais profundas, os pesquisadores encontraram restos de fauna extinta, como o milodonte, juntamente com instrumentos líticos utilizados pelos primeiros grupos de caçadores-coletores que povoaram a região.

Ao longo do Parque Nacional Nahuel Huapi, em locais como a Cueva del Cerro León ou nas proximidades do lago Mascardi, existem pinturas rupestres feitas por povos originários. Essas manifestações representam figuras antropomórficas, cenas de caça, sóis, zig-zags e espirais, sinais que alguns pesquisadores relacionam com práticas rituais ou simbólicas xamânicas. A rocha e a terra são os arquivos onde o tempo se inscreve, revelando uma continuidade entre natureza e cultura que define o espírito profundo deste território.

Durante séculos, a região foi um ponto de passagem obrigatório entre o oeste e o leste do continente. A travessia da cordilheira era feita por caminhos naturais utilizados pelos povos originários. Com a colonização europeia, essas passagens foram percorridas por missionários jesuítas, exploradores e comerciantes. O Paso Pérez Rosales, formalizado no século XIX, conectava a região de Puerto Montt e Osorno (Chile) com o lago Nahuel Huapi. O trajeto era uma verdadeira odisséia: carroças carregadas com produtos ultramarinos e ferramentas tinham que ser puxadas por bois por trilhas íngremes, cruzando numerosos córregos e áreas alagadas no meio da selva valdiviana. Esta floresta úmida, dominada por alerces milenares, lengas e arrayanes, era tão densa quanto majestosa. Muitos carreteiros relatavam que em dias de chuva, as estradas se transformavam em lamaçais onde as rodas ficavam presas por horas.

Uma das anedotas que sobrevivem na toponímia é a da “Laguna de los Clavos”. Em uma das viagens desde o Chile, uma carroça carregada de pregos destinados à construção de casas em Bariloche virou numa curva. Os pregos ficaram espalhados no fundo de uma lagoa que, graças a esse episódio, ainda hoje leva esse nome. Essas travessias não eram apenas façanhas logísticas: elas teciam vínculos humanos e culturais entre famílias chilenas e argentinas, muitas das quais compartilhavam profissões, comércio e histórias de vida. Alguns casamentos mistos deram origem a linhagens locais que, ainda hoje, mantêm tradições transcordilheiras. O trânsito entre o Chile e a Argentina não era apenas econômico: era também emocional, simbólico, cotidiano.

No final do século XIX, os primeiros colonos europeus começaram a se estabelecer, muitos deles provenientes da Suíça, Alemanha, Itália e Espanha, aos quais se juntaram famílias chilenas com experiência em ofícios como carpintaria, agricultura e navegação lacustre. Colonia Suiza foi um dos primeiros enclaves organizados. A arquitetura se desenvolveu de forma vernácula, com materiais locais: madeira de cipreste, pedra local e telhas. Ainda existem casas com técnicas do tipo “fachwerk”, próprias da tradição alpina.

Um dos pioneiros da época – a quem se deve o “Carlos” de San Carlos de Bariloche – foi Carlos Wiederhold (1867-1935), chileno de origem alemã, que abriu o primeiro armazém de secos e molhados que foi o embrião da futura cidade, fundada por decreto em 3 de maio de 1902. Os primeiros habitantes construíram casas, hortas, pousadas, armazéns de secos e molhados e capelas pequenas. A Hostería Blest, o Hotel Correntoso em Villa La Angostura e o Hotel Tronador foram algumas das primeiras construções dedicadas à recepção de visitantes. Em 1906, a família Goye inaugurou a primeira padaria da região, abastecendo colonos e visitantes. Em 1912, a família Gallardo fundou uma das primeiras fazendas com produção agrícola e florestal. Também surgiram padarias, carpintarias, cervejarias artesanais e lojas, que abasteciam os habitantes e turistas.

Primo Capraro, em 1917Fotos: Museo De La PatagoniaMembros da comunidade suíça em Los Cipreses, a casa de Emilio Frey que foi recentemente restaurada pela marca “Patagonia”. por volta de 1918Colección Rothlisberger / Archivo Visual PatagónicoMuitos dos sobrenomes dessas famílias pioneiras perduram nas ruas da cidade, em reconhecimento ao seu legado. A família Bachmann, por exemplo, não apenas construiu casas e galpões, mas também participou ativamente da fundação de instituições educacionais e sociais. Hoje em dia, uma das casas da família é preservada pelo Ente Municipal de Patrimônio, para manter parte dessa herança tangível.

Primo Capraro, vindo do norte da Itália, foi um verdadeiro construtor. Instalou serrarias, construiu pontes, casas, escolas e até uma frota de embarcações. Foi fundamental na ligação comercial com o Chile e no desenvolvimento econômico da região. Emilio Frey, engenheiro e topógrafo, trabalhou ao lado do Perito Moreno na Comissão de Limites com o Chile e mais tarde foi diretor do Parque Nacional Nahuel Huapi. Sua casa foi recentemente restaurada pela empresa Patagonia, como parte de um projeto de conservação patrimonial.

Em 6 de novembro de 1903, Francisco Pascasio Moreno doou ao Estado nacional uma extensão de terras às margens do Lago Nahuel Huapi, expressando seu desejo de que fossem protegidas: “Desejo que estas terras se conservem virgens para o estudo e bem-estar das gerações futuras”, escreveu em sua célebre carta. Esse ato generoso deu origem ao Parque Nacional do Sul, que em 1934 foi reorganizado como Parque Nacional Nahuel Huapi, o primeiro do país e um dos pioneiros do continente.

Exequiel Bustillo está ligado à história de BarilocheFotos: Museo De La PatagoniaMembros do Clube Andino Bariloche celebram a posse do Refúgio López. Destaca-se a presença de Andrés Lamuniere (o primeiro em pé, à esquerda), ao seu lado Emilio Frey. No centro (com boina, óculos e bigode), Carlos Markstahler. No meio, sentado com camisa de mangas curtas, Pedro Strukelj (o guarda do refúgio), e ao seu lado, sua filha Rosalía, em 1947Colección Albicker / Archivo Visual PatagónicoNesse mesmo ano, foi criada a Direção de Parques Nacionais. Seu presidente, Exequiel Bustillo, e seu irmão, o arquiteto Alejandro – juntamente com os colegas Ernesto De Estrada e Miguel Ángel Cesari – impulsionaram um ambicioso plano de urbanismo e desenvolvimento arquitetônico. A cidade de Bariloche foi concebida como modelo, com um centro urbano bem definido, vilas satélites (como Llao Llao, Mascardi, Angostura, Catedral e Traful), e equipamento público adequado: escolas, estações, estradas, mirantes e casas de guardas florestais.

Localizado no majestoso enclave entre os lagos Nahuel Huapi e Moreno, a construção do Hotel Llao Llao merece destaque. Escolher o local mais apropriado para a construção implicou na chegada de um grupo seleto à região. Além dos Bustillo, chegaram o marquês de Salamanca e Alberto del Solar Dorrego, especialista em golfe. Sobre a colina localizada em Puerto Pañuelo, a 25 km do centro de Bariloche, em 9 de janeiro de 1938, o hotel aristocrático de 132 quartos, estilo canadense e muita madeira, foi oficialmente inaugurado. Suas instalações incluíam telegrafia, correios, uma filial do Banco de la Nación e farmácia. Parques Nacionais encarregou-se de prepará-lo para funcionar, e o Plaza Hotel, com experiência no assunto, organizou o trabalho. Não durou muito. Um ano e dez meses depois, um incêndio destruiu o edifício em quatro horas. Dizem que a madeira e a serragem, usadas como isolante nas divisórias, somadas ao forte vento, foram uma combinação letal. Nunca se soube como o fogo se originou, nem a causa pela qual o sistema de alarme e tubulação também não foram acionados.

O Llao Llao pegou fogo em 26 de outubro de 1939 e foi reconstruído em tempo recorde. Reaberto em 15 de dezembro de 1940AGNVista do restaurante do Llao Llao. Foi concebido como um hotel de categoria, mas não luxuosoFoto KaldschmidtA catástrofe confirmou a determinação dos pioneiros, que o reinauguraram em 15 de dezembro de 1940: o novo hotel atraiu membros da aristocracia, diplomatas, presidentes e hóspedes ilustres. Foi um ícone de glamour e orgulho da cidade, até que em 1978 foi obrigado a fechar devido à falta de investimento e manutenção. Assim permaneceu por 15 anos. Vidros quebrados, saques e grossas correntes foram símbolos do abandono até que reabriu em 1993. Nas mãos do grupo Sutton, que também possui o Alvear, e recentemente também o Plaza, é uma referência de luxo na Patagônia.

A descoberta do vapor Helvecia em 2024 não apenas confirmou sua existência e sua engenharia de design, mas também se tornou uma oportunidade para contar a história da navegação como eixo articulador do desenvolvimento. Ao lado dele, o vapor El Cóndor foi fundamental para a conexão entre Puerto Blest e Puerto Pañuelo. Os primeiros passageiros eram comerciantes, famílias inteiras, cientistas como o próprio Perito Moreno.

A Modesta Victoria foi construída por Parques Nacionales em 1937. A entidade a operou até 1969. Recebeu esse nome em homenagem à primeira embarcação que chegou ao Nahuel HuapiAGNA Modesta Victoria também foi cenário de visitas ilustres. O navio de 39m de comprimento foi construído nos estaleiros Verschure de Amsterdã por encomenda da Direção de Parques Nacionais e depois transportado por via marítima e ferroviária, totalmente desmontado. Foi lançado em Bariloche em 10 de novembro de 1938 e, mesmo tendo tido interrupções em seu serviço, permanece operacional, como o navio insignia da Turisur. Em 1967, recebeu a rainha Juliana dos Países Baixos e, em 1995, o presidente espanhol Felipe González. Sua silhueta branca, com corrimãos de ferro forjado e detalhes de madeira na cabine de comando, permanece como ícone de elegância e tradição lacustre.

A partir da década de 70, o Instituto Balseiro começou a trabalhar em conjunto com a INVAP, a empresa estatal especializada em projetos tecnológicos de alto nível. De Bariloche, foram projetados e fabricados satélites, sistemas de energia e reatores nucleares exportados para países como a Argélia, Egito e Arábia Saudita. A combinação entre ciência básica, indústria de precisão e contexto natural deu origem a uma cultura do conhecimento enraizada na montanha. No campus do Centro Atômico Bariloche, laboratórios de criogenia, aceleradores de partículas e trilhas cercadas por coihues convivem.

Caminho coberto com uma espécie de plataforma entre Puerto Blest e Puerto Frías. Publicado em Caras y Caretas em 1929AGNA vida cultural de Bariloche vibra entre a tradição andina, a herança europeia e as expressões contemporâneas de uma comunidade criativa. Em bairros como El Frutillar ou no centro histórico, multiplicam-se os espaços culturais, as bibliotecas populares, as oficinas de cerâmica, tecelagem e música. O Camping Musical Bariloche, fundado em 1950, já recebeu músicos renomados e até hoje realiza concertos ao ar livre.

A gastronomia local reflete o mestiçagem cultural: a truta, o veado, o cordeiro, as frutas vermelhas e o chocolate artesanal convivem com receitas trazidas por imigrantes como o strudel, a torta negra e o fondue. De acordo com dados da Associação Hoteleira e Gastronômica local, Bariloche conta com mais de 450 estabelecimentos gastronômicos e produz mais de 200 toneladas de chocolate artesanal anualmente.

O patrimônio imaterial inclui também as festas tradicionais: a Festa Nacional da Neve, a Festa do Curanto em Colonia Suiza, a Semana do Chocolate e as cerimônias mapuches em torno do Ano Novo (Wiñoy Tripantu). A oralidade, a toponímia indígena e a persistência de conhecimentos tradicionais completam uma cartografia sensível que dialoga com o entorno.

Monumento a Roca no Centro CívicoA educação em Bariloche foi pensada desde sua fundação como parte de um projeto integral. As primeiras escolas funcionavam em residências particulares até que, na década de trinta, a Direção de Parques Nacionais construiu prédios escolares em cada vila. Hoje em dia, a cidade conta com mais de 40 escolas primárias, técnicas e rurais, além de campi universitários.

A Universidad Nacional del Comahue, a Universidad Nacional de Río Negro, o CREAL e o Instituto Balseiro formam um ecossistema acadêmico de excelência. Em 2023, mais de 6.000 estudantes universitários estavam residindo na cidade.

Devido à sua importância simbólica, o Ciprés Histórico era usado como ponto de encontro em eventos públicos. Aqui, uma reunião de escoteiros, em 1930.AGNO Hospital Zonal Ramón Carrillo, fundado em 1938, foi pioneiro em medicina de alta complexidade na Patagônia. Sua arquitetura de pedra e madeira, parcialmente projetada pela equipe de Parques, permanece de pé. Atualmente, conta com mais de 300 leitos e atende a uma população regional de mais de 150.000 pessoas.

Desde as pinturas rupestres até os laboratórios de física avançada, Bariloche é testemunho de uma história que não para. Um território onde o passado remoto e o futuro possível convivem às margens de um lago que viu passar glaciares, caravanas, pioneiros e satélites. Onde a pedra e o átomo, a raiz e a inovação, se entrelaçam como parte de uma mesma narrativa.

Como disse o Perito Moreno, “o futuro do país está na sábia conservação de seu patrimônio natural e na educação de seu povo em contato com ele”. Bariloche é, ainda hoje, uma de suas expressões mais claras.

Alex Barsa

Apaixonado por tecnologia, inovações e viagens. Compartilho minhas experiências, dicas e roteiros para ajudar na sua viagem. Junte-se a mim e prepare-se para se encantar com paisagens deslumbrantes, cultura vibrante e culinária deliciosa!