De Borges ao exorcismo contra a extrema direita: um ponte cultural une Buenos Aires e Lisboa

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“Nada ou muito pouco sei dos meus antepassados portugueses, os Borges: vaga gente que continua na minha carne, obscuramente”, inicia o poema dedicado aos seus antepassados paternos, oriundos de Moncorvo, um vilarejo luso próximo à fronteira com a Espanha. Mais de meio século depois da publicação desses versos pelo grande escritor argentino em seu livro O Fazedor, Argentina e Portugal continuam sendo dois países desconhecidos em margens opostas do Oceano Atlântico. Este ano, a presença de Lisboa como cidade convidada de honra na Feira do Livro de Buenos Aires estabeleceu uma ponte cultural entre as capitais e seus habitantes, bem como entre suas línguas.

“O mundo, hoje mais do que nunca, necessita desses cruzamentos entre países, entre culturas, com a palavra escrita, a música e a arte”, disse na quinta-feira em Buenos Aires o prefeito de Lisboa, Carlos Moedas, no grande estande da cidade na Feira. Moedas destacou o papel da cultura em abrir mentes, derrubar medos e criar vínculos. “Em um mundo tão polarizado, em um mundo em guerra, a cultura é ainda mais importante”, afirmou em uma entrevista coletiva. O prefeito lisboeta lembrou que Portugal acabou de celebrar os 50 anos da Revolução dos Cravos e exaltou o papel dos escritores para a liberdade e a democracia.

A romancista Lídia Jorge, estrela da delegação portuguesa e uma das candidatas ao Prêmio Nobel, também trouxe de volta a revolução com a qual Portugal pôs fim a 48 anos de ditadura. “É preferível viver em uma democracia imperfeita do que em uma autocracia”, afirmou durante sua apresentação na Feira. A autora, que viveu toda a sua infância e juventude sob o regime militar português, expressou sua tristeza porque muitos jovens desconhecem a história e subestimam o valor da democracia. Mesmo assim, sustentou que a maioria dos portugueses enxerga a Revolução dos Cravos “como um exorcismo contra a ameaça da extrema direita” que cresce em Portugal e no resto do mundo.

Esta romancista portuguesa está unida à Argentina por uma história de abandono familiar: seu pai emigrou para cá quando ela tinha quatro anos e nunca mais voltou. Nestas terras, aos pés da cordilheira dos Andes, ele formou outra família, e alguns de seus membros estiveram na Feira na quinta-feira para acompanhá-la. Sua mãe a criou do outro lado do Atlântico, onde faleceu em 2020 por covid. Agora, sua memória atravessa as águas com Misericórdia, a última novela de Jorge, premiada com o Médicis Estrangeiro. O último ano de sua vida, passado em um lar de idosos, inspirou as páginas desta obra onde a escuridão da invalidez se mistura com os cuidados, a esperança e o desejo de viver.

O prefeito lisboeta lamentou que nunca tenha sido possível conectar em profundidade as línguas portuguesa e espanhola entre Portugal e Espanha, mas mostrou esperança de que isso possa acontecer na América do Sul, onde ambas são centrais. O coração do estande de Lisboa é um círculo de livros: alguns traduzidos e outros em sua língua original. Existem títulos de autores consagrados como Fernando Pessoa e José Saramago, assim como outros menos conhecidos para o público argentino, mas que fazem parte da delegação que visitará Buenos Aires nas próximas semanas: Francisco José Viegas, Yara Monteiro, Isabel Stilwell e Bruno Vieira Amaral, Pedro Mexia, entre outros.

Lisboa e Buenos Aires compartilham um grande amor pelas livrarias. A primeira se orgulha de ter a mais antiga do mundo, Bertrand, fundada em 1732; a segunda, de ser a capital latino-americana com mais livrarias, embora a atual crise econômica tenha muitas delas em dificuldades. As vendas na Feira, o evento literário mais popular do país, serão essenciais para garantir sua sobrevivência este ano.

Moedas se surpreendeu com o notável conhecimento que alguns leitores locais têm de Pessoa e também ao ver que muitos se arriscam a comprar obras não traduzidas, mesmo sem dominar completamente o português. “Falar em outra língua, ter que pensar nas palavras, nos coloca em uma posição mais vulnerável, mas essa vulnerabilidade pode ser boa, devemos parar de temer”, disse, encorajando essa leitura, que pode ter um toque de estranheza, mas também de desafio e descoberta.

“A estranha beleza da vida”, como diria o compositor Rodrigo Leão, que batizou assim seu último disco e neste sábado oferecerá um concerto na Usina del Arte de Buenos Aires. Leão faz parte da programação musical pensada por Lisboa para divulgar a música portuguesa e suas interseções com as letras, como a Lisbon Poetry Orchestra fez alguns dias atrás. O pianista Artur Pizarro, o guitarrista Gaspar Varela e a musicista Ana Lua Caiano traçarão um percurso pelos sons portugueses.

Tanto Moedas quanto a Ministra da Cultura de Buenos Aires, Gabriela Ricardes, ressaltaram o desejo de que a ponte cultural criada pela Feira seja mantida ao longo do tempo, com mais traduções e políticas públicas que facilitem as trocas. “Vamos continuar caminhando. É uma longa jornada de proximidade”, prometeu o prefeito lisboeta.

Alex Barsa

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