A realidade argentina de 2024, liderada por um presidente em guerra mundial contra o Estado de bem-estar aos gritos de “Viva a liberdade, caramba!”, ultrapassa a ficção. Apenas o Big Brother e o futebol conseguiram ofuscar as notícias mais assistidas do país, e a população argentina passou os primeiros meses do governo de Javier Milei ligada às novidades diárias que vinham da Casa Rosada. Não há dinheiro para 18 ministérios: metade deles foram excluídos. Não há dinheiro para obras públicas: tudo foi suspenso. Não há dinheiro para tantos funcionários públicos: até 70.000 serão demitidos. Quase não há dinheiro para as universidades públicas, nem para a pesquisa científica, nem para políticas contra a violência de gênero, nem para tratamentos médicos caros para doenças raras… O porta-voz presidencial, Manuel Adorni, tem sido o principal veículo de muitas dessas notícias, sendo ele um conhecido tuíteiro que personifica hoje o lado mais mordaz do governo ultradireitista.
Desde a posse de Milei em 10 de dezembro, Adorni tem realizado quase diariamente uma coletiva de imprensa que pode ser acompanhada ao vivo no YouTube. Através dos comentários abertos ao público, seus fãs o encorajam a “domar” os jornalistas, ou seja, a criticar suas perguntas ou dar respostas cortantes para expô-los. “Tomo café da manhã todos os dias com essas coletivas, é melhor que a Netflix”, escreve um usuário aguardando a aparição de Adorni na sala de imprensa da sede do governo argentino. “Ele é uma máquina de destruir zurdos”, “o melhor porta-voz da história”, “domador de jornalistas”, comemoram outros uma vez que ele começa.
Alguns desses intercâmbios são editados posteriormente em vídeos curtos e viralizados através das contas do porta-voz presidencial nas redes sociais: seus seguidores se aproximam de um milhão no Instagram, ultrapassam os 700.000 em outra rede e estão a caminho dos 150.000 no YouTube. No vídeo mais popular, com mais de dois milhões de visualizações, um dos jornalistas credenciados na Casa Rosada, Fabián Waldman, da FM La Patriada, narra um a um os ataques sofridos por vários colegas na repressão policial de uma manifestação e Adorni interrompe várias vezes pedindo que ele formule a pergunta. Sem se abalar, Waldman continua contando os jornalistas feridos e no final pergunta a ele: “Este governo quer liberdade de imprensa para poder transmitir o que está acontecendo, como o que aconteceu ontem no Congresso?”. “Sim. Próxima pergunta”, responde.
“Não entendo qual é o direito suposto que você está defendendo”, diz Adorni em outra de suas respostas editadas a Waldman ao ser questionado sobre o decreto de necessidade e urgência de Milei que limitava direitos trabalhistas como o direito de greve ou a atividade sindical até que esse capítulo foi parado pela justiça. “Diga olá à Télam antes que ela vá embora”, escreveu de forma jocosa após a suspensão do serviço da agência estatal de notícias, onde trabalhavam 700 pessoas.
Os despedidos continuarão a ocorrer, quase como um processo permanente e eterno”, garantiu ele após a não renovação dos contratos de mais de 15.000 funcionários públicos no final de março. “Em 30 de junho haverá outra varredura e limpeza”, antecipou na última sexta-feira ao se referir à nova onda de demissões em massa, que já se aproxima de 30.000. “É saudável que seja assim”, acrescentou, sem mostrar preocupação alguma com esses trabalhadores que ficaram desempregados sem receber indenização ou seguro-desemprego durante a crise econômica.
O porta-voz também acusou os jornalistas de terem problemas conceituais e de estarem confusos. Quanto mais dura é sua resposta, mais aplausos ele recebe nos comentários e em questão de minutos se transforma em um novo vídeo de zombaria que se espalha rapidamente nas redes libertárias. “Olá, senhor domado”, dirigiu-se Milei a Waldman no dia em que o presidente se apresentou na sala de imprensa.
Organizações sociais, sindicalistas, funcionários públicos, movimentos feministas e povos indígenas estão entre os alvos favoritos do porta-voz de Milei, que é um dos principais agentes do governo na batalha cultural contra a esquerda, que enfatiza a comunicação e a educação.
“Vamos proceder para proibir a linguagem inclusiva e tudo relacionado à perspectiva de gênero em toda a Administração nacional”, comunicou em fevereiro, antes do fechamento definitivo do Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidades. “Acabou a propagação de bandeiras e simbolismos pseudomapuches”, disse dias atrás ao zombar do nome indígena que desde 2008 tinha um lago na Terra do Fogo, no extremo sul da Argentina – “Acigami é um nome aborígene que significa saco alongado, vá Deus saber o que tem a ver” – e anunciando que voltaria a ser chamado de Lago Roca, em homenagem ao ex-presidente Julio Argentino Roca. O governo reivindica Roca como o herói fundador da Argentina moderna, mas para os povos originários ele é um genocida por ter liderado a campanha militar contra os indígenas do sul do país.
Adorni é amado pelos seguidores de Milei e odiado por seus opositores. Se os peronistas chamam desdenhosamente os antiperonistas de gorilas, ele se apropriou do termo: “Gorila: pessoa que trabalha todos os dias para poder viver um pouco melhor, mas que contribui com mais da metade do que ganha em impostos para manter um Estado inviável. Além disso, quer eliminar os planos sociais para piqueteiros e preguiçosos. Também é chamado de fascista. Fim”.
Assim como seu líder político, o porta-voz se alimenta da polarização. “Eu quero a divisão. Eu quero os criminosos, os corruptos, os ladrões, tudo o que não faz bem para a Argentina de um lado e as pessoas do bem do outro”, afirmou ao receber o prêmio de melhor tuíte de 2022. Esse discurso encontrou ressonância em uma sociedade desencantada com os políticos e empobrecida após anos de estagnação econômica e alta inflação, contribuindo para a ascensão fulgurante de Milei à Presidência argentina. A popularidade de seu porta-voz o aproxima de uma futura candidatura política.