Mercosul, a cimeira da discórdia

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A agressividade tem se tornado cada vez mais um insumo fundamental na política. Os líderes descobrem que a mobilização de sentimentos hostis é um recurso muito lucrativo para obter consenso em sociedades polarizadas. Essa estratégia de consumo interno muitas vezes se internacionaliza. Os insultos e desqualificações atravessam fronteiras e ameaçam causar crises entre Estados.

No Mercosul, o bloco formado pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, essa tendência está se aprofundando. Tem seu ponto de partida em um conflito entre Luiz Inácio Lula da Silva e Javier Milei. Mas com o passar dos meses, começa a se refletir nas relações institucionais. A última novidade é que o presidente argentino, em uma decisão inédita, decidiu não comparecer à reunião de chefes de Estado que essa associação de países realizará em breve em Asunción. Milei será representado por sua chanceler, Diana Mondino.

Lula não é o único presidente que Milei evitará. Também não se encontrará com o boliviano Luis Arce, com quem também está inimizado. A Bolívia participa dessas reuniões como candidata a ingressar no Mercosul. Quando na semana passada, movimentos militares liderados pelo general Juan José Zúñiga, que avançava em direção a La Paz, a chancelaria argentina emitiu imediatamente uma condenação. Também subscreveu o comunicado do Mercosul condenando esse ato de insurreição e reivindicando a manutenção da democracia na Bolívia. Mas no domingo passado, o Escritório do Presidente da Argentina publicou uma declaração denunciando o que aconteceu na Bolívia como um golpe falso, orquestrado por Arce. O inesperado: também Evo Morales, adversário de Arce dentro do Movimento ao Socialismo, expressou a mesma interpretação. “Lucho mentiu aos bolivianos e mentiu ao mundo”, disse Morales.

O presidente da Bolívia exigiu desculpas de Milei. E recebeu o apoio de Lula, que viajará na semana que vem para La Paz para expressar seu apoio pessoalmente. Mais uma divergência entre Lula e Milei.

A cúpula de Asunción oferecia a primeira oportunidade para que Lula e Milei se reconciliassem. Respiraram o mesmo ar em Borgo Egnazia, o luxuoso resort onde Giorgia Meloni recebeu os participantes da reunião do G7 no mês passado. No entanto, os dois presidentes estabeleceram uma estratégia muito rígida para não se encontrarem frente a frente durante toda a reunião. Milei participou desse encontro por aconselhamento enfático de vários colaboradores, pois, apesar de aceitar o convite, tinha decidido de última hora não comparecer.

A inimizade entre Milei e Lula tem raízes na campanha eleitoral argentina do ano passado. Quem atirou a primeira pedra? Em fevereiro de 2023, Lula visitou Joe Biden em Washington e alertou, sem citar nomes, que, dependendo do resultado dessas eleições, a democracia na Argentina poderia estar em risco. No mês anterior, em Brasília, uma manifestação opositora, identificada com Jair Bolsonaro, invadiu a sede dos três poderes do Estado, seguindo um impulso golpista semelhante ao que, em Washington, levou uma multidão de simpatizantes de Donald Trump a ocupar o Capitólio.

Nesse contexto, Lula apontou a Biden, sem dúvida, o pesadelo que seria uma vitória de Milei, a quem ele associa a Bolsonaro. É uma associação justificada. Milei estabeleceu uma relação muito próxima com Bolsonaro e, principalmente, com seu filho Eduardo, que visitou em várias ocasiões no Brasil.

O candidato da extrema direita argentina retribuiu as atenções de maneira mais ofensiva. Em uma entrevista com Jaime Baily, disse que Lula era um “corrupto” e também um “comunista”, o que talvez seja mais grave para ele.

É evidente que Lula estava convencido de que a democracia argentina estava sob ameaça com Milei. Do Brasil, chegaram reforços para Sergio Massa, candidato à sucessão de Alberto Fernández, que propunha a continuidade do kirchnerismo no poder. A equipe de marketing político que assessorou Massa era composta por especialistas que já haviam trabalhado para Lula.

As chancelarias brasileira e argentina desdobraram toda a sua flexibilidade para manter a relação bilateral a salvo do ódio pessoal. O primeiro passo para suspender seriam as declarações presidenciais. Milei mostrou que, quando quer, pode se moderar, na reunião do G7. Seu escritório de imprensa, que é hiperativo em divulgar todas as suas manifestações, dessa vez absteve-se de divulgar as palavras que ele pronunciou diante de seus colegas. Sabe-se que foram muito moderadas. Talvez não tenha sido por consideração a Lula. Sentados à mesa estavam também o papa Francisco, Biden e o chanceler alemão Olaf Scholz, que certamente não iriam gostar de ouvir que “justiça social é um crime” e “o socialismo é um câncer que matou milhões de pessoas”, como o argentino costuma pregar.

A trabalhosa boa vizinhança não resistiu a um episódio conflituoso. Do Brasil, 143 presos, acusados de participar daquela tentativa golpista de 8 de janeiro, fugiram. Para a Argentina entraram 86, que pediram asilo político. Manuel Adorni, porta-voz de Milei, declarou que a conduta do governo seguirá a lei. Em Brasília, esperam mais: que o pedido de refúgio seja rejeitado e que sejam extraditados.

Diante desse pano de fundo de tensões e às vésperas da reunião do Mercosul, Lula quebrou o silêncio e falou de seu colega. Disse que esperava um pedido de desculpas de Milei pelas “bobagens” ditas sobre ele. O porta-voz Adorni adiantou que isso não aconteceria. E do gabinete da Presidência, foi vazado que o presidente não compareceria a Asunción. Até ontem, a embaixada argentina em Asunción tinha a solicitação de aluguel de carros.

Para acentuar o desdém, Milei confirmou sua participação em uma cúpula de forças de direita, liderada pelos bolsonaristas, no Brasil. Ou seja, ele irá ao país vizinho para fazer política interna, como também fez na Espanha, juntando-se à campanha do Vox. Ninguém tem o direito de reclamar. Lula visitou Buenos Aires muitas vezes para discursar em eventos kirchneristas. E Sánchez gravou anúncios de televisão a favor de Massa, o rival de Milei. As ligações entre Estados estão sendo ofuscadas para que prevaleçam as ligações entre facções.

A construção do Mercosul e, em geral, as relações internacionais na região, giram em torno do que se conhece como diplomacia presidencial. O contato direto entre chefes de Estado que acertam políticas ou resolvem problemas. Essa dimensão das relações exteriores joga contra a harmonia entre Argentina e Brasil. Mas a divergência não termina aí.

As administrações de Lula e Milei têm posições opostas sobre questões importantes que se refletem além de suas fronteiras. Diante da guerra da Rússia contra a Ucrânia, o Brasil tem mantido uma relação preferencial com o governo de Vladimir Putin. E Milei é um aliado hiperativo de Volodimir Zelensky. A ponto de a Argentina ter aderido ao Grupo de Contato de Defesa da Ucrânia, plataforma da OTAN para planejar ações em prol desse país.

Essas afinidades e rejeições tiveram uma manifestação clara no início deste ano. A Argentina, com Alberto Fernández, havia aceitado o convite para se juntar ao grupo BRICS, liderado pela China e integrado por Rússia e Brasil. Milei anunciou que revisaria essa decisão e que não entraria para o grupo. Outras diferenças estão por vir: por exemplo, é improvável que argentinos e brasileiros adotem a mesma posição em questões comerciais, quando discutirem relações com outros blocos, como o acordo do Mercosul com a União Europeia.

Diante da guerra em Gaza, a contradição é ainda mais aguda. Milei adere com grande ênfase à política israelense. Lula acusou Benjamin Netanyahu de dar aos palestinos um tratamento semelhante ao que os judeus receberam dos nazistas. Israel o declarou persona non grata.

As definições mais gerais de ambos os governos também estão em oposição. Por exemplo: Karina Milei, a poderosa irmã do presidente argentino, destacou uma espécie de interventora na Chancelaria, a advogada Ursula Bassett, para revisar com critérios reacionários as posições dessa agência em questões de gênero, meio ambiente e direitos humanos. Três questões em que Lula adota uma perspectiva progressista, talvez mais radical do que a que ele mesmo abraçou em suas gestões anteriores.

Alex Barsa

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