Uma enseada pequena e uma enseada escondida. Enseadas secretas, as melhores enseadas. E como raios os instagramers descobriram essa enseada, droga, se era toda nossa, uma preciosidade!Ao sol diante do Mediterrâneo.
Enseadas e enseadinhas no pé dos paredões de rocha: baías pequenas de água transparente e areia clara. Os catalães amam as enseadas; são capazes de andar quilômetros pelo Camí de Ronda, um caminho antigo que contorna o litoral, para descer até uma enseada inacessível e sempre encontram uma nova à qual só se chega por mar.
Em pouco mais de 200 quilômetros –desde Blanes até Portbou, na fronteira com França–, a Costa Brava tem mais de cem enseadas. Além de falésias, olivais, figueiras e terraços cobertos de vinhedos. Além do Parque Natural Cap de Creus, o ponto mais oriental da península ibérica, para onde iremos em um par de dias. Além de vistas imensas do mar azul. Uma destas vistas, a de um hotelzinho em Calella de Palafrugell, inspirou Serrat a escrever “Mediterrâneo”.
Na Costa Brava, há vilarejos que alguma vez foram de pescadores; vilarejos brancos, como Cadaqués e Portlligat, por onde passearam Dalí e Gala, Picasso, Paul Éluard, André Breton, Magritte e outros surrealistas. Durante o século passado foram territórios de vanguarda e boemia; hoje estão minados de turistas de todo o mundo e de catalães de Barcelona que têm segunda residência. Sobre esses últimos brinca Lluis, um amigo que vive em um vilarejo próximo: “Vêm com o uniforme de Cadaqués, todos com o estilo de Ibiza, de branco, de preferência com tecidos de linho, e chapéu de palha”. Como muitos habitantes, Lluis está cansado dos turistas. Mas nem por isso deixa de voltar.
Esta manhã navegamos no veleiro O último rizo em direção a Cala Jóncols. Pouco depois de zarpar vejo o perfil do golfo de Roses, a cidade de veraneio que se estende e soma casas e mansões incrustadas nas colinas. Vejo alguns trechos do Camí de Ronda e bunkers que Franco mandou construir no final de 1945 para se defender de um possível ataque dos Aliados, e que não chegaram a ser utilizados. São estruturas de concreto e pedra com teto vivo. Eles são apontados por Verónica Medina, uma argentina que vive há 30 anos na Espanha e, junto com David Franch, o capitão, projetam experiências de velejar pela Costa Brava.
Cala Jóncols está além do museu de El Bulli, que abriu ao mesmo tempo em que fechava o famoso restaurante de Ferran Adrià. Logo após passar o Cap Norfeu, com falésias que recebem e devolvem as ondas como se brincassem com a tramontana, o vento moderado e frio dessa região.
A Costa Brava faz parte de Girona, uma das províncias que formam a Catalunha, e compreende três regiões costeiras, Alto Ampurdán, Baixo Ampurdán e La Selva, e duas no interior: Pla de l’Estany e Gironès. Traduzida, essa geografia é a deliciosa mistura da paisagem do mar e da ruralidade, o campo catalão, onde se pode encontrar um castelo defensivo do século X convertido em um hotel charmoso como o Castell de Vallgornera, delicioso hotel boutique que abriu em maio de 2024. Dizem que a Costa Brava tem ares da Toscana, e não estão errados.
Para Dalí, nada era mais perfeito que um ovo. Os vejo na cornija do museu de Figueras e nos jardins de sua casa e sobre o telhado, em Portlligat; em esculturas e pinturas. Para ele, o ovo representava a vida, o ovo cósmico. Até a vida intrauterina: dizia que tinha memórias de ter estado no útero de sua mãe. O ovo foi uma das obsessões que o acompanharam desde criança, quando queria ser Napoleão.
Também o obsesionava a física atômica. Antes de ingressar no Teatro Museu Dalí de Figueras há uma escultura em homenagem ao átomo de hidrogênio e dentro está a “Galatea de las esferas”, a obra onde se vê Gala estourada por uma banda de átomos.
–Enquanto pintava, Gala lhe lia textos sobre ciência. Ele dizia que isso o ajudava a concentrar-se –conta Miquel Roger, guia especializado em Dalí, enquanto caminhamos pelo museu cheio de gente. Se não tivéssemos comprado o ingresso anteriormente, não conseguiríamos estar aqui. O mesmo acontecerá em Portlligat. Salvador Dalí foi um sucesso em vida (capa da Time, em 1936) e depois de morto. E era um excêntrico, talvez o famoso mais estranho que tenha existido. O homem que ansiava pintar os sonhos e que passeava pelo centro de Figueras com um elefante que lhe haviam dado na companhia Air India. O artista que depois de comer queijo camembert pintou “A persistência da memória”, a obra dos relógios derretidos, que não está aqui, mas no MoMA de Nova York. O vizinho que teve três cisnes como mascotes e quando morreram os embalsamou. O que anunciou que desde sua cama em Portlligat era o primeiro espanhol a ver o nascer do sol, esquecendo-se dos compatriotas das Baleares. O homem que disse: “A diferença entre os surrealistas e eu é que eu sou surrealista. O autor de Diário de um gênio.
Antes da Segunda Guerra Mundial, Picasso comprou passagens para Dalí e Gala irem aos Estados Unidos, onde havia estado, pela primeira vez, em 1934, e onde ficou até 1948.
–Nos Estados Unidos entendeu que como artista não só tinha que pintar, também podia fazer cinema, escrever, performar, projetar joias, móveis, casas.
Assim que entro no teatro museu de Figueras, vejo o Cadillac que comprou em 1941 –Gala o dirigia porque ele não sabia dirigir– e que depois converteu na obra “Táxi chuvoso” com um mecanismo que fazia chover em seu interior.
O museu ocupa o lugar do antigo teatro municipal que o prefeito de Figueras doou, justamente em frente à igreja onde Dalí foi batizado. Ramón Guardiola, prefeito nos anos 70, pediu-lhe uma obra para o museu da cidade e ele respondeu que a Figueras doaria um museu completo. Inauguraram em 1974 e Dalí o interviu e transformou em uma peça artística, sua obra maior. Queria proibir a entrada a críticos de arte, mas não pôde.
Os quadros, as esculturas, a história do pintor amigo de Lorca e Paul Éluard se entrelaçam com os braços esticados dos turistas que tiram fotos e filmam um vídeo e outro para ver Gala nua dentro do rosto de Abraham Lincoln.
O mundo Dalí é narcisol, extravagante, genial. Gala, que era russa e 10 anos mais velha, conheceu como esposa de Paul Éluard. Ele, René Magritte e Luis Buñuel –com quem havia rodado O cão andaluz– o visitaram em Cadaqués. Gala nunca mais voltou com seu marido. Ficou para sempre com Dalí e foi musa e tudo. Por um tempo, o artista assinou suas obras como Gala Dalí.
Dalí morreu em 1989 e seu túmulo está sob o palco desse teatro, sob o quadro desse enorme alien de peito partido que preside a sala. Não descansa com Gala, que morreu vários anos antes e está enterrada no castelo de Púbol, presente de Dalí. Quando Gala estava em Púbol, Dalí tinha que pedir-lhe permissão por escrito e só podia ir se ela autorizasse.
Os fãs do artista propõem desenterrá-lo e levá-lo perto dela ou trazê-la e que estejam juntos na morte como estiveram na vida.
–Para entender Dalí você tem que ir a Cadaqués –diz Miquel diante do quadro “Port Alguer”, no qual duas mulheres com cântaros na cabeça caminham para uma imagem estruturalista da vila branca, com a igreja em alto.
Vamos a Cadaqués em um carro alugado, um híbrido vermelho como um tomate que rasteja silenciosamente por estradas secundárias da geografia de curvas e colinas dessa costa íngreme e bonita. Se continuássemos um pouco mais, chegaríamos à fronteira por onde a cada final de semana cruzam centenas de franceses para passar o dia e comprar, abastecer, porque é conveniente a troca.
No caminho passamos por campos cultivados e vilarejos que começam com a placa de seu nome e terminam com a placa de seu nome riscado. Nomes difíceis de pronunciar: Avinyonet de Puigventos, Castelló d’Empúries, El Mas Fumats e assim por diante.
Dá vontade de parar em todos, pelas construções antigas, a fachada românica de uma igreja do século XII ou um bar que promove em um quadro rations de polvo e tapas de tortilla.
Esse percurso é durante a temporada baixa e, menos mal, porque no verão Cadaqués fica saturada –os 3.000 habitante se multiplicam por cinco– e até pode fechar. Nos últimos anos também restringiram à metade a quantidade de passageiros que podem descer dos cruzeiros que partem do porto de Roses para passar o dia em Cadaqués. Apesar da temporada baixa ainda há gente, mas não sufoca. Encontram-se mesas nos bares e é possível caminhar pela orla em calma. Não é época de praia; mesmo assim, uma moça toma sol sobre uma canga e duas crianças brincam de jogar pedras no mar.
O carro fica em um estacionamento que cobra por minuto meio euro, e depois é “se perder pelas ruas”. Isso responde a funcionária do posto de turismo quando pergunto o que fazer.
–Você se perde, mas logo se encontra.
É um dia ensolarado de céu azul, talvez por isso a vila parece ainda um pouco mais branca. Restam algumas buganvílias em flor, embora já tenha passado o verão. Figueiras, ciprestes e suculentas em varandas e jardins. Escuto as ondas quebrarem contra algum muro antes de ver o mar. Os lampiões das ruas estão pintados com intervenções marítimas: um pôr-do-sol, um veleiro, um entardecer. Vejo roupas brancas penduradas em paredes brancas e, um pouco encandilada, subo até a igreja de Santa Maria. Um homem toca violão e o vento leva a música. Dentro parece que o dourado do altar barroco não brilharia nada diante da luz brutal do dia. Leio que a missa é no domingo às 10.
Quero caminhar até a pequena baía onde Dalí pintou o quadro “Port Alguer” e ficar no mesmo lugar que as mulheres com os cântaros na cabeça, um pouco antes dos pórticos. No caminho passo por uma imobiliária onde se vende uma propriedade por € 4.800.000 (260 m2) e Can Cabrisas, uma confeitaria antiga à qual decido entrar (vontade). Atende Mercé, a dona. Mostra na vitrine rosquinhas de anis de Figueras e os petsdoces, bolos em forma de rolha de champanha muito solicitados. Mercé diz que desde que saiu uma matéria na TV coreana não param de vender. Fazem 5.000 por dia e não dão conta.
–Somos confeiteiros desde 1700. Antes chamava-se La Mallorquina.
–Então talvez Dalí tenha vindo –digo.
–Claro, como não. Meu pai e meu avô o atendiam, era uma pessoa agradável, vamos, que agia como Dalí. Quando eu era menina levei bolos à casa dele. Sabe do que ele gostava? Do peixe de nata, como o que temos aqui.
Depois de uma briga severa com o pai, que o expulsou de casa e de Cadaqués, Dalí encontrou seu refúgio. Não foi muito longe: Portlligat está a 3 quilômetros de Cadaqués. Em 1932 comprou uma barraca de pescadores para se instalar com Gala e ter seu atelier. Segundo ele, nessa baía breve havia uma “tranquilidade planetária”. Nos 40 anos seguintes, além de trabalhar, dedicou-se a expandir essa barraca a partir de novos módulos que comprava e anexava, segundo ele, como uma “estrutura biológica”. Antes de viajar a Paris (no outono) e aos Estados Unidos (no inverno) deixava o design esboçado e, ao voltar, tinha que estar pronto para que Gala o decorasse. Assim foi até que a musa morreu, em 1982, e Dalí nunca mais voltou. O trabalho ficou parcialmente terminado e assim se vê, o bastidor sobre o cavalete, como se tivesse jogado o pincel e saído correndo. Durante mais de uma década, a casa esteve vazia –mas cuidada– e, em 1997, a adaptaram e transformaram na Casa Museu de Portlligat.
Construída sobre a rocha e as escadas contornam os desníveis entre os diferentes ambientes: o quarto principal, os estúdios de trabalho, o guarda-roupa de Gala, a biblioteca, o quarto das cores. Há objetos táteis, que ele usava para se inspirar: desde a concha de um ouriço do mar até pedras, estrelas-do-mar, espelhos e sempre-vivas, a flor que mais gostava de Gala. Das terraças se vê o Mediterrâneo e nos jardins crescem oliveiras.
Depois de percorrer a obra, a gente fica pensando no gênio da arte e do marketing, nas extravagâncias, na vida privada dos surrealistas.
Como é fora da temporada, está habilitado o caminho estreito e sinuoso que chega ao farol do Cap de Creus. A paisagem mineral de rochedos escuros vai se abrindo até que aparece o mar, primeiro à direita, depois à esquerda e, ao final, é onipresente. O farol está a cerca de 600 metros de altura. Ali se estaciona o carro e cada um escolhe sua própria aventura: 1) conhecer o museu gratuito que conta a história do parque natural; 2) tomar uma cerveja no bar; 3) descer até o mar por caminhos nas rochas e fazer um trecho do Camí de Ronda; 4) encontrar uma rocha e ficar ali sem fazer nada. Algo tão elementar quanto sentar para contemplar o mar, isso também é a Costa Brava.
“Triângulo Daliniano”. Assim se chama o roteiro que une as três propriedades de Dalí: o Teatro Museu de Figueras, a Casa Museu de Portlligat e o Castelo de Púbol.