Para chegar, é preciso atravessar a estepe, esse território predominante na Patagônia austral. Um domínio amarelo de coirones e expressões mínimas, imenso, constante, que gera um sentimento muito parecido com a euforia e a melancolia ao mesmo tempo. Pousamos em Comodoro Rivadavia e dirigimos para Santa Cruz até encontrar a RN 40. Deixamos para trás o povoado de Perito Moreno, o último destino urbano antes do portal Cañadón Pinturas, um dos muitos acessos para o Parque Patagônia. Ali, as coisas começam a mudar: a estepe se alterna com mesetas, ravinas e áreas úmidas. Em direção ao oeste, quando o céu está limpo, avistamos os Andes e o imponente Monte San Lorenzo, com 3.750 metros de altitude. Chegamos ao entardecer, acompanhados por Marian Labourt da fundação Rewilding Argentina, que administra as 92.000 hectares da área que ainda não foram doadas ao Estado nacional. Vale ressaltar que, a oeste e ao norte, este parque faz divisa com o Parque Nacional Patagônia, e a leste, com o Parque Provincial Cueva de las Manos. Os grupos de guanacos aparecem dos dois lados da estrada. Mais adiante, alguns choiques se empenham em vasculhar o solo em busca de alimento. Chegar à Posta de Los Toldos é uma espécie de prêmio, depois de dirigir seis horas desde Comodoro Rivadavia, que é o caminho mais rápido para quem vem do norte do país. A estufa a lenha está acesa na ampla sala que faz as vezes de recepção e sala de jantar, com grandes janelas por onde se vislumbra a paisagem. Gabriela Rüttimann, a anfitriã, nos recebe com um caloroso acolhimento. Nos instalamos nos quartos, que têm todas as comodidades necessárias para enfrentar o clima rude da região. O jantar é compartilhado em uma grande mesa com os hóspedes da pousada: uma ideia que promove a troca de experiências e histórias. O cardápio, caseiro, delicioso, elaborado com produtos locais, é organizado em três pratos que são saboreados com conversas longas e uma taça de vinho. Antes de irmos dormir, vamos em grupo até um pequeno observatório de pedra ao ar livre, a poucos metros da pousada. A fogueira está pronta e as peles de ovelha estão dispostas para que possamos nos sentar e observar as estrelas sem pressa. Se há algo que caracteriza as pessoas que trabalham no parque, é o compromisso com o projeto de Rewilding, não importa a tarefa que desempenhem. O valor do cuidado e da recuperação da vida selvagem acaba contagiando. Alguém retorna, inevitavelmente, mais consciente do que chegou. O parque tem cerca de 100 km de trilhas preparadas para caminhadas. Todas são autoguiadas e foram projetadas com critério panorâmico. Além disso, foram feitos trabalhos para facilitar o tráfego, como degraus e plataformas que se integram à paisagem. Existem trajetos de baixa, média e alta dificuldade, mas geralmente são muito acessíveis. Algumas trilhas se ligam formando circuitos mais longos; outras exigem um transporte de carro para serem iniciadas. Todas contam com sinalização e serviços de banheiros secos. Aqueles que buscam um desafio extra, fora das trilhas, devem contratar um guia autorizado. É proibido adentrar por conta própria, para evitar acidentes ou se perder. O Parque Patagônia fica ao sul da meseta do lago Buenos Aires. Uma parcela menor, no entanto, está ao norte, com terrenos privados no meio. Esse setor – que hoje é Parque Nacional – correspondia à antiga fazenda La Ascensión e é acessado pelo portal de mesmo nome. O sonho da Rewilding Argentina é que tudo seja, um dia, uma grande região binacional preservada que continue além da fronteira (Nota da Redação: no Chile, já existe o Parque Nacional Patagônia, cuja formação teve a participação da mesma fundação). Do lado argentino, a iniciativa surgiu para proteger o macá tobiano. A população dessa ave endêmica de Santa Cruz tinha diminuído em 80% quando a fundação Aves Argentinas, que trabalhava no problema, pediu ajuda a Douglas Tompkins (1943-2015). O homem – bilionário e filantropo – que já vinha trabalhando nos pântanos do Iberá com várias espécies em perigo, os ajudou. Basicamente, ele conseguiu os fundos para comprar as terras que constituíam um dos últimos refúgios da espécie. Para começar a conhecer o parque, nada melhor do que se aprofundar no trabalho de restauração do ecossistema. Então, partimos para a estação biológica El Unco na companhia de dois de seus membros, Jorge Maldonado e Nicolás Gizzi. A ideia dessa nova proposta para o visitante é mostrar como o trabalho é feito por dentro. A estação emprega cerca de 15 pessoas; alguns se dedicam a tarefas científicas de coleta de dados e elaboração de conclusões; outros vão a campo. Além disso, há um programa de voluntários que permite aos interessados com um perfil adequado se juntarem às diferentes tarefas. De caminho, na RN 40, constatamos o que alguns hóspedes nos contaram durante o jantar na pousada. Em vários trechos da estrada, presos nas cercas que delimitam as propriedades privadas, há restos de guanacos que ficaram presos e morreram. Os ossos e a pele desgastada pelo sol e pelo tempo deixam evidente um problema sério. “A Rewilding acabou de retirar a última linha de arame em todo o cercamento perimetral, o que diminuiu a mortalidade”, garante Jorge. A essa altura, o guanaco pula e não fica preso. O guanaco não conhece os limites dos homens e segue por instinto sua rota ancestral”, concluiu. Uma vez em El Unco, saímos para percorrer o pântano, que tem 22 hectares e foi restaurado após o desvio das vertentes e a suspensão da pecuária e da agricultura. O local é o novo lar do coipo, uma das espécies trazidas para cá porque havia desaparecido na região. Um grande número de armadilhas fotográficas testemunha o programa de monitoramento. O coipo é importante porque dispersa juncos e o junco impede a evaporação da água dos pântanos, mesmo na estação seca. Além disso, cria plataformas vegetais sobre a água, fazendo com que as aves migratórias nidifiquem no local, adotando-o como parte da rota. É uma espécie de engenheiro que cria caminhos internos no pântano, que delimita trilhas para que outras espécies transitem facilmente: ele facilita a vida deles para que permaneçam. O pântano atrai e multiplica a vida. Na região, existem 34 variedades de aves. Enquanto caminhamos, vemos patos, galinhas-de-água; até é possível avistar saracuras, uma espécie que tem sua maior população aqui e que, até 1998, se pensava estar extinta. Notamos 60 indivíduos, anilhamos e colocamos transmissores VHF para aprender sobre seus hábitos”, nos informam. Outros programas visam ao monitoramento do gato-do-mato, uma espécie bastante difícil de ser observada, e são chamados de “fantasmas”. Também existem projetos de monitoramento e estudo de pumas em diferentes estágios de desenvolvimento. Iniciativas relacionadas ao cunha (tipo de roedor) laranja, aos mesopredadores (animais de grande porte que caçam e são caçados), ao choique e ao guanaco. Essas duas últimas espécies são comuns na região, embora sua população possa ser maior em relação à extensão de terra disponível. Em tais casos, a ideia é realocar indivíduos para áreas onde tenham desaparecido. Vários choiques já foram transferidos para o Chaco e La Pampa. Inclusive, cerca de 15 cruzaram a fronteira para o Chile na primeira transferência transnacional de fauna selvagem da América do Sul, um dia antes de nossa chegada. O próximo desejo é a reintrodução do huemul, extinto na área. Vamos visitar o enorme curral preparado para isso, enquanto nos explicam os estudos necessários para que a tarefa seja um sucesso. Esses projetos exigem muita pesquisa e trabalho prévio. “Muitas dessas iniciativas são concretizadas com o apoio da fundação Freyja e visam à restauração dos ambientes, à erradicação de espécies exóticas e à disseminação”, destaca Marian Labourt. Eles nos dão uma verdadeira aula sobre os diferentes elementos usados para identificar espécies, todos equipados com a mais recente tecnologia: coleiras com transmissores para os pumas até dispositivos diminutos para as aves, que, por meio de câmeras ou sinais VHF, conectados a um satélite, geram informações sobre hábitos, deslocamentos e interações. O almoço se desenrola com uma vista maravilhosa do Cañadón Caracoles. As últimas margaridas selvagens aparecem altas, com seus botões brancos, antes de chegarem os grandes frios. Jorge nos convida para sair e procurar pumas. Em seu receptor, ele captou um sinal forte de Sable, uma das fêmeas que eles monitoram há algum tempo. Lá vamos nós com a antena que funciona por telemetria e funciona como uma bússola. Primeiro de carro e depois por uma caminhada íngreme na montanha, tentando falar suavemente e pisar ainda mais suavemente. É difícil avistar Sable, embora o sinal se torne mais forte à medida que chegamos a um pequeno cânion por onde corre um riacho. Os binóculos não trazem nenhuma imagem até que Nicolás a avista entre os arbustos. Embora tentemos nos aproximar, não conseguimos vê-la de novo. Ela se escondeu em uma moita, na base do cânion, e é perigoso chegar perto porque está com dois filhotes. Em frente à pousada Los Toldos está o início da trilha Tierra de Colores, uma das mais atraentes. É muito fácil, não leva mais do que uma hora e atravessa uma formação jurássica onde as cores incríveis afloram: marrom, amarelo, ocre e, principalmente, vários tons de vermelho, produzidos pelo óxido de ferro em diferentes momentos de oxidação. Ao longe, vislumbra-se a meseta do lago Buenos Aires. Mais adiante, aparece a meseta Sumich, outro destaque maciço da região. O dia é ensolarado e o vento está completamente ausente, algo incomum na região, por isso caminhar é uma delícia. Os dias sem vento serão a característica dos próximos dias, por isso agradecemos esse gesto inesperado da natureza. O pôr do sol é o melhor momento para visitar Tierra de Colores. Repomos as energias com um delicioso almoço na pousada. Hoje, o cardápio convida com torta de carne de cordeiro e cabutiá, sempre com uma entrada e uma sobremesa: desta vez, chocotorta. À tarde, nos espera a trilha La Guanaca, cerca de seis quilômetros que levam ao topo do Monte Amarillo. De lá, é possível ver a confluência dos cânions Pinturas e Caracoles, com o rio Pinturas serpenteando entre eles. Se virarmos a cabeça, vemos os montes Chato e Poivre. O melhor: um casal de condores planando no céu. O Centro de Interpretação e Planetário leva o nome da mulher que o sonhou, Elsa Rosenvasser Feher. Essa física argentina desenvolveu grande parte de sua carreira nos Estados Unidos. Ela foi membro do Exploratorium de São Francisco e dirigiu o Centro Interativo de Ciências Reuben Fleet, em San Diego. Em seus últimos anos, decidiu deixar um legado para o seu país de origem. O planetário é a sua herança. Os 800 m² foram projetados pelo artista Leandro Panetta e o arquiteto Oscar Romero do estúdio Spirit. A construção se mimetiza com a paisagem e sua peculiaridade é descoberta por dentro. A fachada de vidro que dá acesso está coberta por uma série de varetas de madeira intercaladas. O material provém das cercas que foram retiradas para facilitar a circulação livre da fauna, na etapa inicial do projeto. Uma vez dentro, os pedaços de madeira continuam no revestimento das paredes de forma envolvente, e se estendem até o teto formando as órbitas dos planetas ao redor do sol. No centro, está a nossa estrela principal, representada por centenas de placas de metal vermelho que foram numeradas de 1 a 5 pelos designers. Cada número indica uma inclinação diferente que, à luz do dia, vai desenhando sobre a superfície áreas mais sombreadas que correspondem às manchas solares. “No começo, todo o Universo estava concentrado em um único ponto, e você já estava lá”, diz a placa que inicia o percurso e nos convida a uma longa viagem pelo desenvolvimento geológico da região, a evolução das espécies e o progresso cultural dos grupos humanos. Depois, há uma seção reservada à crise da biodiversidade e às estratégias para recuperar os ecossistemas. Por fim, no auditório do planetário, chega o momento mais prazeroso: uma viagem pela noite do Universo e suas principais constelações. Quando saímos, já escureceu. O céu patagônico reproduz, de fato, a magia das estrelas no firmamento. Nos esperam na fogueira de La Señalada, um antigo posto de fazenda convertido para alimentar aqueles que optam por acampar nas redondezas. Possui banheiros e várias empalizadas de madeira em forma de meia-lua que protegem as barracas do vento. Aqueles que desejarem experimentar uma noite de acampamento, sem equipamento ou experiência, podem reservar o novo serviço que aguarda o passageiro com a barraca montada, a cama, o saco de dormir e várias mantas extras. Logo cedo, partimos para a Cueva de las Manos. É possível chegar de carro, mas seguimos a tradição da caminhada e pegamos a trilha Cañadón Pinturas. O caminho percorre esse acidente geográfico de cima e oferece vistas lindíssimas das paredes de pedra que despencam. Descemos e cruzamos o rio Pinturas. Em uma parede, dezenas de viajantes deixaram suas mãos impressas com a lama do rio, e nós não ficamos atrás. A área se formou durante um processo que começou há 150 milhões de anos, no Jurássico. A grande caverna fica no alto do cañadón e abriga pinturas valiosas, mas não é o único tesouro. Ao redor, metros e metros de painéis pintados na rocha em diferentes momentos são distintos; os mais antigos, de 9.300 anos atrás. Seus criadores foram os primeiros habitantes da região, caçadores coletores que seguiam a rota do guanaco. Embora as pinturas fossem conhecidas pelos habitantes locais, ganharam relevância por volta de 1940, “quando o padre italiano Alberto de Agostini chegou à região. O religioso as fotografou e publicou esse material em um livro chamado Andes Patagônicos”, conta a guia do local. O estudo científico e sistemático do local começou apenas em 1972, com o arqueólogo Carlos Gradín e sua equipe. “Eles dividiram todo o material em três grupos de acordo com a antiguidade, com base na coloração, no design, na técnica e nos dados fornecidos pelo método de carbono 14 ao analisar os artefatos encontrados durante as escavações”, acrescenta nossa guia. Aqui são identificadas a maior quantidade de mãos pintadas do mundo, cerca de 800. Além disso, há cenas de caça e motivos simbólicos, cujo significado é difícil de afirm
O parque austral que é refúgio de espécies em perigo e estreou um moderno planetário
- Post publicado:13 de maio de 2025
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Alex Barsa
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