Javier Milei, admirador confesso do presidente salvadorenho Nayib Bukele e sua mão dura, defende na Argentina um Estado limitado que se concentra principalmente na aplicação da lei e da ordem. Ele escolheu sua ex-rival presidencial, Patricia Bullrich, como ministra da Segurança, que já ocupara o cargo durante o governo de Maurício Macri. Oito anos depois, as condições são mais propícias para a implementação de suas ideias autoritárias. Ele estreou com um protocolo antipiquetes que já havia testado em 2016 e que permite a intervenção das forças de segurança “diante de impedimentos ao trânsito de pessoas ou meios de transporte, bloqueios parciais ou totais de estradas nacionais e outras vias de circulação” sem mediação judicial e permite exigir das organizações responsáveis “o custo das operações”.
A estreia do protocolo ocorreu na manifestação de 20 de dezembro de 2023, onde foi implantada uma operação policial superdimensionada que resultou na evacuação violenta dos presentes e na responsabilização das organizações participantes. Apesar disso, o Governo não conseguiu intimidar o que na Argentina é uma tradição muito arraigada: sair às ruas para expressar o descontentamento social. Houve várias manifestações muito concorridas, como a convocada pela Central Geral do Trabalho no primeiro dia de greve geral em 24 de janeiro, as das organizações feministas em 8 de março e a universitária, que reivindicava a atualização dos fundos para a educação pública. O protocolo se revelou impossível de ser aplicado em eventos massivos, levando a crer que estava obsoleto diante da resposta popular. No entanto, após seis meses de governo, a hostilidade em relação à liberdade de expressão teve um novo capítulo.
No dia 12 de junho, ocorreu a votação no Senado Nacional da denominada “Lei Bases”, uma megaproposta de desmantelamento do Estado enviada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional. Diversas organizações sindicais, sociais e políticas convocaram manifestações, e desde cedo nos arredores do Congresso se reuniu uma multidão com o objetivo de promover a rejeição. Dentro do recinto, falava-se de um possível empate na votação, o que indicava que a participação nas ruas poderia influenciar na decisão final.
Após o meio-dia, começaram alguns distúrbios. Alguns manifestantes atiraram pedras e incendiaram um veículo diante da passividade da polícia, que depois os deixou escapar. Pouco depois, as forças de segurança avançaram violentamente contra a multidão. Utilizaram gás lacrimogêneo, balas de borracha, bombas de efeito moral e caminhões-pipa. A evacuação da rua ocorreu em meio a uma atmosfera de alta tensão, culminando em mais de 200 feridos e 33 detidos.
Sasha Llyardet, acompanhada por suas colegas da universidade, relatou em diálogo com a mídia que ao ver os conflitos com as forças de segurança, começaram a se retirar, porém um grupo de agentes motorizados estava a algumas quadras do local. “Esperavam por aqueles que estavam indo embora, saíram para caçar as pessoas. Ficamos assustadas e começamos a correr como todos”, conta. “Uma amiga caiu, eu me atrasei ao tentar ajudá-la a se levantar e apareceram uns policiais. Retiveram ela no chão e me disseram que se eu fugisse, atirariam”, relata entre lágrimas.
A violência dessa cena não parou de escalar. Os agentes apontaram a arma para sua cabeça e repetiram várias vezes que se ela não gostasse disso, “não deveria ter vindo”. A partir desse momento, ela foi levada para várias delegacias, o que dificultou a localização por parte de sua família, que soube de sua detenção pela mídia, até que conseguiram encontrá-la na Alcaldía 15 da Cidade de Buenos Aires, onde passou a noite algemada em um corredor.
Os relatos coincidem: nas ruas, as forças de segurança impuseram o terror para dispersar a manifestação. As detenções foram tão arbitrárias que levaram até pessoas que estavam nas proximidades por outros motivos. Emiliano Villar, advogado responsável pela representação do detido Luis Alberto de la Vega, uma pessoa em situação de rua que estava nas redondezas, relatou: “Ele estava a caminho da escola onde estava terminando o ensino fundamental, nem sequer sabia que havia uma manifestação. A polícia motorizada causa muito medo, eles sobem na calçada com seus veículos, fazem emboscadas. Então Luis se escondeu atrás de um container porque estava assustado. Isso foi suficiente para concluírem que ele estava fazendo algo errado e o levaram”.
A Argentina carrega uma história de repressão estatal muito significativa e há costumes que persistem como estratégia de autocuidado. Por exemplo, nas manifestações, aqueles que são detidos gritam seus próprios nomes para facilitar a posterior localização de seu paradeiro. Foi o que fez Luis Alberto de la Vega, e graças a alguém que estava filmando a situação e compartilhou nas redes sociais, a Associação Civil Proyecto 7 – que auxilia pessoas em situação de rua – cuidou de descobrir para onde ele foi levado e disponibilizar representação legal.
Após a repressão, a conta oficial do Gabinete do Presidente em X (ex-Twitter) emitiu um comunicado parabenizando as forças de segurança “por seu excelente trabalho em reprimir grupos terroristas que, com paus, pedras e até granadas, tentaram dar um golpe de Estado, atentando contra o funcionamento normal do Congresso da Nação Argentina”.
Perto da meia-noite, a Lei Bases foi votada no Senado em geral, e o resultado foi um empate. A vice-presidente, Victoria Villarruel, desempatou a favor do oficialismo.
A pedido do procurador federal Carlos Stornelli, as 35 pessoas foram colocadas à disposição da justiça federal, sob a supervisão da juíza Maria Servini. Elas foram acusadas de vários crimes, como lesões, incêndio ou dano, crimes contra segurança pública, instigação à criminalidade, intimidação pública, incitação à violência coletiva contra instituições, crimes contra os poderes públicos e a ordem constitucional, atentado contra a autoridade agravado, resistência à autoridade e/ou perturbação da ordem em sessões legislativas. Além disso, foi decretada a prisão preventiva de 33 deles e vários foram transferidos para unidades do Sistema Penitenciário Federal.
“Estávamos com muito medo”, disse Sasha Llyardet, descrevendo as condições deploráveis na prisão. As condições nas prisões são desumanas, e esse é outro problema a ser resolvido, mas neste caso houve um tratamento especial com os presos por protestarem. Durante esses dias, outros detidos relataram torturas que incluíram intimidações, humilhações e lesões físicas.
As famílias, com o apoio de várias organizações sociais, organizaram duas concentrações para exigir a libertação dos detidos. Finalmente, em 14 de junho, Servini decretou a libertação de 17 dos detidos e quatro dias depois mais 11 foram liberados. Além disso, foi resolvida a situação processual dos 33 acusados: o processamento com prisão preventiva de cinco deles, que são os únicos atualmente detidos, e em relação aos 28 restantes, a falta de mérito foi decretada. Ou seja, não havia provas suficientes para sustentar as acusações. No entanto, os processos continuam em aberto até que sejam emitidas as absolvições.
Na mesma semana, o Alto Comissário dos Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, alertou para um “enfraquecimento” nessa área na Argentina. “Insto as autoridades a colocar os direitos humanos no centro de sua formulação de políticas para construir uma sociedade mais coesa e inclusiva. Isso também significa respeitar plenamente o direito de reunião e a liberdade de expressão”, disse.
Apresentação à CIDH
Durante esses dias, as redes sociais e os meios de comunicação expressaram grande preocupação com a situação dos detidos. Os eventos alertaram organizações sociais e órgãos que zelam pelo direito à greve e garantia dos direitos humanos na Argentina, os quais disponibilizaram recursos para as famílias. Ao mesmo tempo, o Centro de Estudos Jurídicos e Sociais fez uma apresentação de intervenção à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e aos relatores especiais das Nações Unidas para intervir naquilo que denominaram uma escalada penal “arbitrária e perigosa”.
Antevendo que esse desfecho fosse possível, em 12 de junho, o Arquivo Histórico da Repressão na Argentina (AHoRA), um projeto de registro fotográfico e documental que faz parte do Mapa de la Policía – a rede de cuidado cidadão para combater a violência policial na Cidade Autônoma de Buenos Aires – trabalhou no local.
Um dos coordenadores do AHoRa, Mario Santucho, disse: “Vimos alertando sobre uma ruptura nos padrões mínimos de democracia. O que aconteceu neste caso foi claramente uma violação do direito do protesto com a dispersão da manifestação, e há muitas evidências para pensar que, apesar de justificarem a ação com os incidentes daquele dia, a repressão estava planejada”.
Nesse sentido, ele destacou “um salto qualitativo na vocação repressiva” do governo com a instrumentalização da ação judicial, que prolongou as detenções por vários dias sem contar com provas para sustentar as acusações. “Agora surge uma grande questão sobre como continuaremos a salvaguardar nosso direito à greve”, afirmou.
Questionado sobre a possível necessidade de ajuda internacional para enfrentar essa situação, ele respondeu que “atualmente, há governos que veem no governo de Javier Milei uma ameaça à democracia. Nós, que estamos no país, continuaremos a fazer tudo o que for necessário para garantir a liberdade de expressão e os direitos humanos, mas talvez não seja suficiente. Pode ser o momento para que em todo o mundo sejam pensadas estratégias concretas de apoio e que se envolvam de fato”.